A Batalha contra a Aranha

01-

O sangue que corria do corte do supercílio esquerdo dificultava manter o olho do mesmo lado aberto.

O corpo todo doía, coberto de hematomas e cortes finos. Definitivamente aquela era a luta mais difícil que Galawel já havia enfrentado nos seus 25 anos de vida.

E pensar que duas semanas antes ela estava calmamente falando com a sua mãe sobre as suas inseguranças pessoais. E era à essa memória, agora tão querida, que ela se apegava para ignorar a dor vinda do fato dela estar usando magia de cura nela mesmo para estancar o sangramento vindo dos ferimentos que cobriam o seu corpo.

Duas semanas antes, numa das varandas do palácio real de Erdan, numa tarde aprazível, onde o sol brilhava no céu sem nuvens e a temperatura estava agradável, Gala conversava com a sua mãe:

– Mãe, eu sou um acidente de percurso?

– Hein? Você não tá meio velha para esse tipo de pergunta?

– Se consideramos que uma criança “não programada” é um acidente de percurso, então eu seria um acidente de percurso, certo?

– Da onde que veio essa ideia, Gala? Foi coisa da Mariana, né?

– …

– Ok, deixando de lado isso, sim, pela sua lógica, sim, você foi um acidente de percurso mas te garanto que nunca existiu um acidente de percurso tão bem feito no mundo quanto você.

– Mãe, assim você me deixa sem graça.

– Mas é a pura verdade, Gala. Você já ouviu isso da boca do seu pai mas eu agradeço todos os dias o fato da sua “mãe de sangue” ter conseguido levar o teu pai para cama.

– Eu admiro a calma com que você fala isso, mãe. Não rola nem um “ciuminho” básico não?

– Do teu pai? Não, a gente não tinha nada na época, seria bobagem ter ciúmes dele. Agora devo confessar que eu tenho um pouco de ciúmes da falecida Lis. Eu queria ter tido o privilégio de ter carregado você na minha barriga.

– Mas aí eu não seria eu, né mãe?

– Visto por esse lado, sim, verdade. E eu não mudaria nada em ti, minha filha. Eu amo você com todos os seus defeitos e qualidades, você é e sempre será o maior presente que o seu pai me deu.

– Deixa os meus irmãos ouvirem isso, vão ficar com ciúmes…

– Bobagem! Os seus irmãos foram concebidos tanto pelo seu pai quanto por mim, então eu não posso dizer que ele me deu os seus irmãos, já você, bem, você era “só” dele e ele me deu a honra de ser sua mãe. Então, sim, ele me deu você, por assim dizer. E eu sou grata todos os dias por isso.

– Para mãe, desse jeito até parece que eu sou a filha perfeita, sem defeitos nem nada.

– Ora, filha, você não é perfeita mas quem é, afinal? E acredite, eu amo até os seus defeitos. Como quando você fica se desmerecendo, igualzinha ao seu pai, que também tem esse péssimo hábito..

– Definitivamente eu sou filha do meu pai, né?

– Com certeza – riu Ardriel. – Agora você ainda não me respondeu da onde veio tanta insegurança. É por causa do baile que o teu avô vai dar em sua homenagem?

– Bem, já que você tocou no assunto, não tem como fazê-lo desistir da ideia, né?

– Não mesmo, filha. Já devias saber que quando o seu avô enfia algo na cabeça ninguém consegue convence-lo do contrário.

– Igualzinho à senhora. Aliás, já sabemos quem a senhora puxou né?

Ardriel não respondeu, só abraçou a filha rindo e depois a convidou para entrar e tomar um chá com bolo.

Dois dias depois acontecia o baile em homenagem aos 25 anos da Galawel. Seu avô convidara dignatários de vários países próximos e nações aliadas e a aniversariante se via enrolada, tendo que desempenhar um papel de diplomata, saudando todos ali presentes, papel este que ela não gostava muito de exercer.

Seus pais e seu irmão Miguel conversavam num canto da festa.

– Pai, quem é aquele elfo com ar arrogante e com cara de quem chupou limão e não gostou ali no canto do salão? – perguntou Miguel enquanto discretamente apontava para um elfo magro, de cabelos platinados e que usava uma casaca vermelha por cima de uma blusa branca e uma calça azul clara

– Aquele, meu filho, é o Conde Ragar Fioriz – respondeu Ardriel, se adiantando ao marido.

– O atual capitão regente da Capitania de Ahmix?

– Perfeitamente, filhote. Ele veio à Erdan para assinar um acordo de comércio e foi obrigado pelos seus conselheiros à comparecer à festa, segundos os boatos. O que faz sentido diante da cara de bunda dele – falou Lucca. – Agora, vamos ver se você andou prestando  nas suas aulas de diplomacia: porque Ahmix é conhecida como Capitania, qual o sistema de governo dela e qual a importância dela do ponto de vista comercial?

– Poxa, pai, hoje é dia de festa, não de cobrança.

– Não enrola e responde, Miguel.

– Ok, ok. Capitania porque é governada por um Capitão Regente. O sistema de governo é o chamado conselho dos seis onde as seis famílias que fundaram a cidade indicam um representante, esse conselho funciona como um parlamento e escolhe para um mandato de três anos um dos seus membros para ocupar o cargo de capitão, sendo que não há reeleição sequencial, com alguém só podendo voltar ao cargo de capitão depois de cinco mandatos, ou seja, depois que as outras cinco famílias tiverem governado é que alguém pode voltar ao poder. E a importância? Bem, Ahmix é um importante entreposto comercial ao sul dos limites do antigo reino de Sudher, situado na beira do Rio Grande do Sul, que nasce na Grande Montanha Solitária, que fica no sul do Continente Central e deságua no delta de Erdan. Praticamente toda a carga que vem do extremo sul através do continente passa por lá antes de chegar no delta.

– Parabéns, meu filho, nota dez.

– Viu, meu filho? Reclamastes à toa, respondestes à pergunta do seu pai sem nem parar para pensar.

– Tá certo, mãe, agora tô liberado para aproveitar a festa?

– Claro, vá lá e aproveite.

Passado mais ou menos meia hora, uma pequena confusão começou a se formar num canto do salão envolvendo o Conde Ragar, Galawel, Aron, João e, curiosamente, o Lorde Ralit, que parecia estar mais irritado com o conde do que os jovens.

Lucca, Ardriel e Miguel correram para lá para ver o que estava acontecendo.

– Miguel, vai distrair o teu avô e deixa que eu e o teu pai cuidamos daqui.

– Tá bom, mãe.

De fato o casal notou que o mais irritado naquele momento era o Lorde Ralit.

– Como ousas, um reles nobre de uma cidadezinha como a sua ofender a princesa deste reino? Dobre vossa língua e recolha-se ao seu lugar.

– Lorde Ralit, sou grato por vossa defesa na minha ausência mas me permita assumir à partir de agora – falou Ardriel.

– Como quiser, alteza.

O idoso nobre fez uma mesura à princesa e se retirou para o outro lado do salão.

– Filhote, o que está acontecendo afinal aqui? – perguntou Lucca para João.

– Bem, pai, esse engomadinho de merda disse que não ia cumprimentar a Gala pois ele não ia se rebaixar a cumprimentar a filha de uma rameira com um aventureiro mestiço alpinista social.

– Mais respeito, filho, este “engomadinho de merda”, usando as suas palavras, é um nobre, líder de uma nação estrangeira e deve ser tratado com respeito, mesmo quando não mereça. Vossa Graça, peço desculpas pelas palavras do meu filho, acredite, apesar de, nas suas palavras, eu ser um alpinista social, ainda sim tenho educação e dei educação aos meus filhos. Educação essa que, neste momento, Conde, me impede de usar palavras de calão ainda mais baixo do que as usadas pelo filho…

Lucca ia continuar a falar mas foi interrompido por sua filha Gala.

– Pai, irmão, agradeço mas eu posso falar por mim mesma. Caro Conde, saiba que, apesar do que pensas, como bem disse o meu pai, ele me deu educação e esta é o que me impede de afundar o meu punho no meio de vossa face. Minha mãe de sangue não era uma rameira, na verdade ela foi sequestrada, escravizada e obrigada a fazer coisas contra a sua vontade. Meu pai, por sua vez, é um herói e não um mero aventureiro e se não consegues notar isso, precisas checar a vossa visão urgentemente. E são as lições de diplomacia que recebi da minha verdadeira mãe, a Princesa Ardriel e do meu avô, o Rei Tauron, que vem à ser o nosso anfitrião nessa noite que me impede de me rebaixar ao vosso nível neste momento. Por isso, para manter o bom relacionamento de nossas nações e como hoje é a minha festa de aniversário, serei magnânima e esquecerei o que dissestes caso peças desculpas aqui e agora.

– Porque eu deveria pedir desculpas por ter dito a verdade, “alteza”? Aliás, palavras fortes para uma garota – retrucou o Conde

– Digo o mesmo: palavras fortes para alguém que tem braços mais finos do que os meus e mãos mais delicadas do que as minhas. Se tivesse honra, convidaria vossa graça para um duelo visando limpar a honra da minha família que manchastes mas como tenho certeza de que não aceitarias o duelo ou, no máximo, mandaria algum lacaio em vosso lugar, com uma desculpa pronta para a derrota que com certeza ocorreria, não perderei mais meu tempo nessa discussão inútil, em respeito ao meu avô, que organizou essa festa e em respeito aos demais convidados que estão aguardando para falar comigo.

– Espere um pouco, “alteza”. Pelo jeito gostas de disputas e se orgulhas do vosso talento com armas, não é mesmo? Então eu tenho uma sugestão para resolver este impasse. Perto da minha cidade há um complexo de cavernas habitas por um povo aranha que está nos causando grandes prejuízos. Alguns ditos “aventureiros” já mapearam as cavernas e conseguiram até diminuir consideravelmente a população deles mas ninguém conseguiu até hoje matar a rainha deles e enquanto ela estiver viva, ela pode produzir mais servos. Minha proposta é simples: mate a rainha, sozinha, me traga a cabeça dela e eu publicamente pedirei perdão por tudo o que houve aqui.

– E se eu falhar? Porque eu duvido que não tenha uma cláusula assim nesse seu acordo.

– Se falhares e sobreviveres, é claro, me serviras como guarda costas, de graça, até o fim do meu mandato, daqui à um ano e meio. Temos um acordo?

– Temos sim.

– Pois bem, se me da licença, me retirarei dessa festa enfadonha.

Rosa, uma linda e loira elfa, filha do irmão mais velho de Lucca, Sieg, que também havia sido convidada para o baile e que havia se aproximado silenciosamente dos tios para descobrir o que estava acontecendo, ao ver o conde se retirar, sussurrou junto dos ouvidos dos tios:

– Tio, tia, vós quereis que eu use algum dos meus “feitiços pegadinha” neste falastrão?

– Não querida, mas obrigado – respondeu Ardriel.

– É, realmente não precisa… Quer dizer, pensando bem, você tem aquele seu feitiço da “prega frouxa” né? Já que o caro conde se porta como se fosse o rei de uma poderosa nação, você poderia providenciar alguns dias de trono para ele, não?

– Vosso pedido é uma ordem, meu caro tio – sorriu a elfa.

Rosa discretamente mexeu os dedos e uma luz diáfana saiu destes, o que foi suficiente para causar no Conde três dias de uma dor de barriga que ele nunca mais esqueceria.

Mais tarde, naquela mesma noite, ainda durante o baile, Lucca conversava à sós com Lorde Ralit.

– Lorde Ralit, muito obrigado por ter defendido a minha filha perante o Conde Fioriz.

– Não precisas agradecer, fiz o meu dever como vassalo do meu rei, não poderia escutar uma ofensa gratuita à neta de meu soberano e ficar calado. Temos nossas diferenças, eu e vós mas minha fidelidade à coroa de Erdan está acima de pinimbas pessoais. Só espero que o meu arroubo não tenha piorado a situação.

– Quanto à isso, não se preocupe, meus filhos se encarregaram de piorar a situação ainda mais – falou Lucca, sorrindo.

– Se permites o aparte, alteza, pretendes respeitar o acordo feito por vossa filha com o Conde?

– Por quem me tomas, Lorde Ralit? É claro que não. Não deixarei ela por  a vida dela em risco por causa de uma discussão besta. Estarei ao lado dela quando ela for enfrentar a criatura e não hesitarei em intervir na luta caso note que ela esteja correndo risco de morrer. Se, amanhã ou depois, quiserem me julgar por causa disso, que julguem mas não me furtarei ao meu dever de pai.

– Pois saiba que eu não lhe julgarei, pois, em vosso lugar, faria o mesmo. A vida dos meus filhos vale muito mais do que um conceito de honra besta. Agora, se me deres licença, esses velhos ossos precisam descansar. Boa noite, alteza.

– Boa noite, Lorde Ralit e mais uma vez, obrigado.

– Como eu já disse antes, só estava cumprindo o meu dever de vassalo.

O idoso meio elfo fez uma mesura e se retirou.

02-

Cinco dias depois do baile uma pequena comitiva se teleportou para uma estrada nos arredores de Ahmix. Esta era formada por Lucca, seus filhos Gala, Joao e Miguel e seu sobrinho Karlon. Eles traziam consigo o grifo de Lucca, Flecha, o grifo de Gala, Flechinha, que alcançará a idade adulta recentemente e uma grande carroça puxada por dois grandes cavalos de pelo todo castanho.

Excetuando Lucca e Gala que vinham montados nos seus respectivos grifos, os outros membros do grupo estavam na carroça.

A comitiva seguiu a estrada até o seu destino, a cidade fortaleza de Ahmix.

Esta era conhecida por este nome por ser envolta numa muralha em formato de “C”, que começava na margem do grande rio, contornava a cidade e voltava a terminar no rio.

De cara as cores da cidade e o seu ar alegre, com influências de várias culturas chamaram a atenção deles, totalmente diferente do ar xenófobo e preconceituoso de seu governante.

Nas ruas eles avistavam pessoas de todos os povos: alados, elfos, anões, humanos do norte, de pele clara, homens do deserto com sua tez morena, homens negros do distante sul mas dois grupos lhes chamaram mais atenção: os anões negros da Grande Montanha Solitária do Sul e homens negros cavaleiros de hipopótamos, responsáveis pela escolta dos navios de comércio que subiam pelo grande rio vindo sul com destino ao grande delta.

– Eu confesso que já havia visto eles uma vez lá em Erdan mas os cavaleiros de hipopótamo nunca param de me surpreender – comentou Gala.

– Ver hipopótamos serem cavalgados só faz o nome deles na Terra ter mais sentido: cavalos de rio em grego – falou Miguel.

– Nerd! – brincou João. – Só você para fazer esse tipo de comentário, irmão.

– Na verdade, filhote, eu já tinha pensado em algo parecido – comentou Lucca

– Filho de peixe peixinho é – disse, rindo, João.

– Gente, a conversa tá boa mas meu pai e as minhas irmãs nos esperam lá na pensão.

– Tá certo, Karlon, podemos falar com calma sobre a cidade depois. Agora vamos logo para onde somos esperados – falou Lucca, encerrando a “discussão” entre os seus filhos.

– Só uma última coisa, pai – insistiu João. – Ainda não entendi por que a mãe e o Arthur não vieram com a gente. Vamos precisar de todo poder de fogo possível e, no caso deles, o fogo é literal.

– Filhote, tua mãe e o teu primo ficaram em Erdan para impedir o teu avô de vir. Além disso eu não confio neles numa situação como essa, os dois costumam ser muito passionais quando o assunto é a honra da Gala e a gente tem que ser o mais objetivo possível.

– Ah, claro, pai, como se o senhor não fosse passional em qualquer assunto que envolva a nossa família… – retrucou João. – O senhor é um poço de auto controle em situações como essa, um exemplo perfeito de objetividade.

– Tá bom, engraçadinho, agora vamos deixar o papo mole de lado e acelerar a marcha porque, como ressaltou o Karlon, o tio e as tuas primas nos esperam.

Depois de algum tempo o grupo finalmente chegaram na estalagem que era o seu destino: uma estalagem grande, um prédio de três andares pintado num tom de salmão suave com janelas e portas brancas, com estábulos largos perto do cais do porto da cidade.

Parados na porta da estalagem estavam Sieg, o irmão mais velho de Lucca, um elfo loiro, mais baixo mas tão largo quanto o irmão, com o cabelo preso num rabo de cavalo e uma barba curta bem aparada e suas filhas, Rosa e Jasmim, que vinha à ser a irmã gêmea de Rosa, extremamente parecida com ela, só usando roupas um pouco mais recatadas do que a irmã.

Eles descarregaram as malas, levaram os animais para o estábulo, as malas para seus respectivos quartos e reuniram na taverna que havia no primeiro andar da estalagem.

– Miguel, tu vais ficar com as minhas filhas aqui, elas vão te passar qual o teu papel aqui – falou Sieg. – Irmão, tu, João, Gala e o Karlon vão me acompanhar até a Guilda dos Aventureiros local. Já comecei a levantar algumas informações sobre a tal “masmorra das aranhas” e acredito que lá teremos mais informações e, com sorte, consigamos aventureiros que conheçam o local e topem trabalhar como nossos guias. Vamos aproveitar que o conde mal chegou na cidade e agir antes que ele consiga nos atrapalhar. Digamos que a diarreia dele acabou sendo útil pois, se não, em no máximo três dias, usando a fragata pessoal dele, ele teria chegado aqui.

– Quanto à diarreia, irmão, a culpa foi minha, eu pedi para a Rosa pôr o feitiço nele.

– Relaxe, Lukhz, eu no teu lugar teria feito o mesmo mas vamos ser objetivos e parar de perder tempo.

Ninguém quis acrescentar mais nada e assim o grupo se separou em dois. Miguel continuou sentado à mesa conversando com as primas.

– Não está decepcionado em ficar para trás, primo? – brincou Rosa.

– Eu confio no tio Sieg, se ele acha que o meu lugar é aqui com vocês, então não vou discutir. Mas, afinal, qual a minha missão?

– Bem, tu sabes que o nosso pai, graças à ligação dele com a Guilda dos Aventureiros, tem ouvidos em quase todo o mundo – respondeu Jasmim. – E ele gosta de posar de calmo e controlado, mas também não gosta de levar uma ofensa calado. Já havia chegado aos ouvidos dele boatos de que a gestão atual da cidade não é tão honesta e correta quanto parece.

– Resumidamente, primo – se intrometeu Rosa -, nosso pai quer que tu nos ajude a levantar os podres do “Conde Cagão” para termos algo para usar contra ele caso ele não tente não respeitar o acordo dele com a Gala ou caso ele tente trapacear.

– Entendi. De fato eu estou mais preparado para trabalhar como “espião” do que o meu irmão ou do que o irmão de vocês. E acredito também que o tio também queira que eu fique de olho em vocês, principalmente em você, Rosa, para garantir que vocês não “aprontem” demais. – falou, provocando, Miguel.

– Te garanto que os nossos métodos de investigação estão sendo totalmente inócuos e sem prejudicar ninguém – retrucou Rosa. – Os homens são bobos, basta um decote, umas palavras doces e um bom perfume e eles falam tudo. Como costuma dizer o tio Lukhz, a maioria dos homens costumam pensar com a cabeça do pinto.

– Eu não diria que o que tu fizeste com aquele mercador tenha sido totalmente inócuo, irmã.

– Ah, Jasmim, deixa de bobagem, foi uma situação em que todos ganharam.

– O que você aprontou, Rosa?

– Bem, minha querida irmã, Miguel, jogou um feitiço para fazer o mercador acreditar que estava transando com ela quando na verdade estava transando com a prostituta mais xexelenta do bordel mais imundo da cidade.

– Então, foi o que eu disse, foi uma situação onde todos ganharam: eu consegui a informação que eu queria, a prostituta ganhou um cachê triplicado pago por mim para permitir que o cara fizesse o que quisesse com ela na cama e ele, pelo resto da vida, vai acreditar que transou com a beldade que vos fala e não com uma prostituta manca, corcunda, desdentada, caolha e com bafo de queijo mofado.

– Pqp, você não vale nada, Rosa – comentou, rindo, Miguel. – Agora, vocês descobriram mais alguma coisa importante?

– Nada confirmado, mas ouvimos boatos interessantes – respondeu Jasmim.

– Tipo?

– Bem, primo, já deveis saber que à dois mandatos atrás o antigo Capitão Regente criou uma segunda câmara parlamentar, a Câmara do Povo, formada por pessoas eleitas no meio do povo, o que diminuiu o poder do conselho dos seis. E agora cabe à essa segunda câmara aprovar ou não mudanças no regime de governo. O boato é que o nosso “querido conde” estaria agindo nos bastidores para permitir a reeleição indefinida do capitão regente, subornando membros da Câmara do Povo para aprovar a mudança e chantageando dois outros membros do Conselho do Seis para impedir que essa vete a mudança, uma vez que são necessários pelo menos 4 votos dos Seis para vetar uma decisão da Câmara.

– Ou seja, o “bonito” está querendo virar, na prática, um rei – comentou Miguel.

– Exato.

– E um rei ou déspota xenófobo numa cidade como essa seria um desastre para o continente. Se ainda fosse uma iniciativa realmente popular, se estivesse ocorrendo de maneira honesta, bem, só poderíamos lamentar. Mas se isso realmente for verdade, bom, não custa nada a gente conseguir as provas e, “sem querer”, divulgá-las, não?

– Eu gosto do vosso modo de pensar, primo.

– Obrigado, Rosa, mas agora vamos nos concentrar nos próximos passos.

Enquanto os três primos discutiam os seus próximos passos, o restante da “comitiva Bianchi” foi até a filial local da Guilda dos Aventureiros.

Havia um dito popular de quem havia visto uma filial da Guilda havia visto todas pois todas seriam supostamente iguais e, bem, ao menos com relação à filial da Capitania de Ahmix, esse dito não poderia ser mais preciso: a guilda ocupava um grande prédio quadrado de telhas azuladas e, quando se entrava neste, passando pelas suas grandes portas duplas, o visitante entrava num grande salão, com um pé direito alto, de mais de 5 metros de altura.

No fundo deste, em frente à entrada, ficava o balcão de atendimento da guilda, com suas recepcionistas. À direita do balcão havia uma porta que dava acesso aos cômodos do primeiro andar localizados atrás do salão de entrada e à esquerda ficava uma escada que dava acesso ao cômodos do segundo andar, situados acima dos cômodos localizados atrás do balcão.

À esquerda de quem entrava havia um grande mural com múltiplos pedidos de missão presos nestes, separados pela escala de periculosidade e pelo nível mínimo que cada aventureiro deveria ter para aceitar a missão.

Já à direita havia um pequeno bar onde se servia bebidas e comidas e, junto deste, múltiplas mesas onde vários aventureiros bebiam, conversavam e traçavam planos.

Por mais que tentassem ser discretos, os Bianchis chamavam atenção por onde passavam e na Guilda não foi diferente, com quase todo mundo parando de fazer o que estavam fazendo para prestar atenção no grupo que entrava.

– Por que está todo mundo nos encarando? – perguntou João.

– Tu realmente estás à fazer essa pergunta, primo? – retrucou Karlon. – De fato eles devem ver todo dia entrar por essa porta um meio elfo de quase uma milha real (dois metros) de altura com duas espadas largas presas no corpo, um elfo barbudo com um braço largo comparável à de um anão e carregando dois machados, uma elfa com cara de durona e que marcha como um general inspecionando as suas tropas e, claro, eu e vós também somos super discretos né?

– Tá, ok, eu entendi.

– Só uma coisa: eu não ando marchando assim toda hora não – protestou Gala.

– Toda hora não, mas hoje sim, filhota, você entrou aqui no seu “modo capitã de Arlon” – comentou Lucca.

Um discreto pigarro do Sieg interrompeu a conversa.

– Agora que eu tenho a atenção de todos, sugiro que sejamos objetivos. Karlon, meu filho, tu e o teu primo João irão ao bar, falar com os aventureiros locais, ver se conseguem alguns guias ou ao menos alguém que nos venda um mapa decente das cavernas. Gala, vós ireis junto comigo e o com o vosso pai nos registrar para aceitar essa missão – falou o elfo, entregando um papel para a sobrinha.

Gala abriu o papel e viu que era uma missão para justamente matar a rainha do povo aranha e que havia sido expedida pelo capitão anterior da cidade.

– Como podes ver, de fato não é de hoje que essa aranha causa problemas para a cidade – comentou Sieg.

– De fato, meu tio, mas eu nunca vi missão com valor de recompensa “mínimo”, geralmente é um valor fixo.

– Se leres mais atentamente, nos detalhes da missão fala de um suposto tesouro existente na câmara principal do complexo de cavernas. No pedido da missão é explicitado que todo o conteúdo do tesouro pertencerá ao grupo que concluir esta e, caso o valor do tesouro não alcançar o valor da recompensa, o governo da Capitania completará até chegar no valor mínimo. Agora, caso o valor do tesouro ultrapasse o valor da recompensa mínima estabelecida, o governo não pagará nada.

– Ideia interessante e, de fato, não chega a ser um mau negócio para ninguém. Pois bem, vamos assumir a missão logo, o prazo final dela vence amanhã.

Gala, seu pai Lucca e seu tio Sieg seguiram até o balcão de atendimento da Guilda. Sentadas atrás deste, usando o uniforme de recepcionista padrão havia uma linda moça cuja pele era negra como a noite e uma meio elfa com cabelos ruivos e discretas sardas junto do nariz.

Gala foi até a atendente meio elfa, entregou o papel com a missão e o um cartão, que vinha a ser o cartão dela de registro na Guilda.

– Eu vim registrar essa missão – falou Gala.

– Você está ciente que essa missão é para membros ouro ou superiores né? – retrucou a recepcionista enquanto via os detalhes do pergaminho, sem se atentar ao cartão que Gala havia entregue junto.

– Eu sei e como podes ver, eu tenho os requisitos mínimos.

– Isso eu vou ver – comentou a recepcionista com um certo desdém.

Todo o desdém dela foi por água abaixo quando viu o cartão que havia lhe sido entregue.

– Pla-pla-platina?

– Sim, algum problema com o meu cartão?

– Não, não senhora, é que é raro ver um nível platina por aqui.

– Você quer que eu me submeta ao cristal de teste?

– Não senhora, não precisa. Mas a senhora está ciente que não pode fazer uma missão dessas sozinha né?

– Por favor, senhora você usa quando falar com a minha mãe, pode me chamar de você mesmo. E eles dois vão comigo – e nisso Gala apontou para o pai e para o tio. – E estamos procurando outros aventureiros que conheçam o lugar e topem servir de guias. Terias algum para indicar?

– Talvez eu tenha alguém sim, mas os seus acompanhantes são aventureiros registrados?

– Eu sou nível platina, assim como a minha sobrinha – disse Sieg enquanto entregava o seu cartão – e ele não é membro da Guilda mas eu te do a minha palavra de que ele é tão bom quanto qualquer aventureiro platina.

– Eu respeito a sua palavra, senhor mas eu vou ter que testar o seu companheiro.

Dito isso, a recepcionista foi até um armário que havia atrás do balcão e pegou uma esfera cristalina, um pouco menor que uma bola de boliche e a colocou em cima do balcão.

– Senhor, por favor, coloque a sua mão direita sobre a esfera e essa vai ler a suas habilidades e estimar o seu nível.

– Isso é mesmo necessário? – perguntou Lucca – A palavra deles não basta?

– Desculpa, senhor mas é procedimento padrão.

– Ok, o prejuízo pela perda do cristal vai ser seu, não diga que eu não avisei….

Lucca fez como lhe fora instruído e colocou a mão direita sobre a esfera. Logo que ele o fez, uma pequena tela azul surgiu, no ar, flutuando acima da esfera e uma linha interminável de palavras e frases foram surgindo nesta enquanto a esfera ia brilhando cada vez mais até que ela começou a emitir um cheiro de queimado, rachou ao meio e se apagou.

– Eu falei, cristais de análise e eu não costumam ser compatíveis – comentou Lucca, dando de ombros.

– Bia, chama o Mestre da Guilda, correndo, diz que temos um problema aqui na recepção – falou a recepcionista, assustada com o que acontecera, para a outra recepcionista.

– Ok, Beth, tô indo – retrucou a outra funcionária, que também ficara atônita com a quebra do cristal.

– Senhoritas, não é para tanto – tentou argumentar Sieg.

– Desculpa, senhor, mas são procedimentos padrões da Guilda – falou Beth.

Não demorou muito e a outra recepcionista, Bia, retornou acompanhada de um anão de cabelos e barba grisalhos.

– O que foi, Beth? Eu tava no meio do meu cochilo.

– Desculpa, Mestre mas esses aventureiros estão tentando pegar uma missão acompanhados deste outro senhor que não é um membro da Guilda. Eles estão insistindo que não precisa testá-lo, que eles atestam a capacidade dele mas eu insisti, afinal é o regulamento padrão da Guilda.

– Eu conheço os regulamentos padrões da Guilda, senhorita, ajudei a escrevê-los mas, nos mesmos regulamentos, é previsto a existência de exceções como essa. Que dois membros platina podem atestar a capacidade de uma terceira pessoa.

Somente quando Sieg falou é que o anão reparou nele e, ao reparar, seu queixo quase foi ao chão.

– Grão Mestre Siegfried, é você mesmo?

– Em carne e osso, Kenvaros. Aliás, a última vez que o vi, tinhas mais fios pretos na vossa cabeça.

– Eu me espanto que o senhor lembre de mim, afinal a nossa filial está longe de ser uma das maiores da Guilda.

– Como membro do Conselho Gestor da Guilda eu tento saber o nome de todos os mestres de todas as nossas filiais.

– E devo supor, Grão Mestre, que quem quebrou o cristal foi o seu irmão, o famoso “ilegível”?

– Ele mesmo.

Confusa com o rumo da conversa, Beth puxou o mestre para um canto.

– Não estou entendendo nada, Mestre.

– Se você prestasse mais atenção nos dados do cartão e não só no nível do aventureiro como já te falei para fazer, terias visto que este na nossa frente é um dos 5 Grão Mestres da Guilda, Siegfried Bianchi.

– Desculpa, mestre, quer dizer, mestres – falou, totalmente sem graça, enquanto se curvava, Beth.

– Deixe estar, mocinha, só prestes mais atenção no futuro nas orientações do Kenvaros – disse, sorrindo, Sieg. – Aliás, Kenvaros, já que estás aqui, não terias uma sala onde poderíamos conversar com mais calma?

– Claro, obviamente, queiram me seguir.

O anão abriu a portinhola que dava acesso ao balcão, saiu de trás desse, foi até o corredor que havia à direita e fez sinal para que fosse seguido.

Logo os quatro, Kenvaros, Sieg, Lucca e Gala se encontravam sentados na sala de reuniões da Guilda. Os viajantes contaram toda a sua história para o mestre da Guilda local, que ouviu atentamente, fazendo apenas comentários pontuais.

– E essa é a nossa história, Kenvaros. Terias como nos ajudar?

– Ajudar a estragar os planos desse bundão que se encontra no cargo de Capitão é sempre um prazer. Ele deixa claro que não gosta de nós e digamos que o sentimento é recíproco. Acredito que conheço os aventureiros certos para ajudá-los nessa missão. E tenho mais uma informação, uma fofoca, que pode ajudá-los. Minto, duas até.

– Toda informação é bem-vinda – respondeu, sorrindo, Gala.

– Como eu disse, mocinha, não posso garantir a precisão de tudo que vou falar mas, diante do que vocês relatam, talvez tenha algum sentido. À coisa de mais ou menos um mês uma caravana de comerciantes que traziam uma encomenda para o Conde foi atacada quando passava junto das cavernas das Aranhas e teve a carga roubada por esta. Isso é um fato, relatado por um dos poucos sobreviventes da caravana. Agora a fofoca é que eles traziam joias preciosas para o Conde e que ele pretendia usá-las para subornar algumas pessoas. A parte do suborno eu não sei mas a parte das joias fazem sentido porque as aranhas tradicionalmente gostam de roubar objetos brilhantes, como joias por exemplo. E eu tendo a acreditar que o Conde tinha algum propósito específico para esse encomenda porque no dia seguinte ao roubo ele esteve aqui tentando revogar essa missão que vocês pegaram, o que eu não permiti. E ele ficou muito revoltado com isso.

– Desculpa a pergunta mas porque você não permitiu a revogação da missão? Foi o Capitão Regente que fez o pedido e ele é o atual Capitão Regente, logo ele teria esse direito, não? – perguntou Lucca.

– Bem, alteza, você não está totalmente errado mas também não está totalmente certo. De fato, foi o Capitão Regente anterior que fez o pedido. Mas ele assinou o pedido usando o seu título de nobre e seu nome e não como “Capitão Regente”, logo, em tese, na verdade, só o capitão anterior poderia revogar esse pedido. Claro, se o Conde Fioriz fosse um cara simpático, legal, eu poderia fazer uma exceção e revogar. Mas eu não me vejo obrigado a fazer favor nenhum para um preconceituoso metido à besta. Nós anões levamos a questão de preconceito bem à sério.

– Senhor Kenvaros, não querendo abusar da sua boa vontade mas será que eu poderia lhe pedir mais um favor? – perguntou Gala.

– Por favor, senhorita, sem essa de “senhor”, me faz me sentir mais velho do que já sou mas, se tiver ao meu alcance, lhe ajudarei com prazer.

– O senhor poderia “abafar” que a gente pegou a missão? Falar com as suas recepcionistas para não divulgar?

– Claro que posso mas, se me permites, porque esse pedido?

– Bom, se as teorias de que o Conde está atrás do tesouro for verdade, acredito que ele possa tentar nos atrapalhar caso saiba que pegamos a missão e que o tesouro será nosso se conseguirmos conquistar as cavernas.

– Faz todo o sentido. Mas o que devo dizer para os aventureiros que vou chamar para ajudá-los?

– Diga que estamos contratando eles como mercenários e que pagaremos metade do valor da recompensa da missão, independente de termos sucesso ou não.

– Uma oferta generosa da vossa parte e acredito que será o suficiente para convencê-los sem que façam mais perguntas.

– Não estamos nesse pelo lucro, senhor Kenvaros, mas por uma questão de honra e honra não tem preço – comentou Gala.

– Isso eu não discuto, senhorita.

– Bem, Kenvaros, muito obrigado por nos escutar e se oferecer para nos ajudar. Creio que já tomamos demais o vosso tempo e temos outros compromissos – agradeceu Sieg.

– É sempre um prazer ajudar um dos Grão Mestres da Guilda.

O trio se despediu do anão, se reuniu com João e com Karlon, que pouco sucesso tinham tido na sua missão de recrutamento e voltaram para a estalagem onde estavam hospedados.

Dois dias depois, à noite, no restaurante da estalagem onde estavam hospedados, o grupo todo se reuniu para trocar impressões e traçar os próximos passos deles diante do que haviam visto e presenciado nos últimos dois dias.

Estavam todos reunidos em torno de uma grande mesa redonda e, sobre esta, havia um grande mapa do sistema das cavernas que havia sido providenciado pela Guilda.

– Como eu estava dizendo mais cedo, aqui será o ponto ideal para acamparmos. O conjunto de cavernas é muito grande e é arriscado tentar chegar na câmara da rainha em um dia só. Se conseguirmos estaremos cansados e pessoas cansadas estão mais sujeitas a cometer erros – falava Sieg enquanto apontava para um ponto específico do mapa.

– Eu concordo contigo, irmão, é melhor avançarmos com calma, garantindo que nenhuma aranha fique viva pelo caminho para podermos retornar da câmara principal com calma e segurança – concordou Lucca. – Aliás, Rosa e Jasmim, sei que se enfiar em aventuras assim não é o forte de vocês mas eu vou precisar que vocês venham conosco para me ajudar com as magias de cura e também revezar comigo na manutenção do campo de força do acampamento.

– Sem problema, tio – disse Rosa

– Um pouco de aventura não faz mal à ninguém – completou Jasmim.

– Só não entendo porque você não nos teleporta direto para a “porta” da rainha, pai.

– João, filhote, para variar você superestima as minhas capacidades – sorriu Lucca. – Eu só consigo me teleportar com precisão para lugar onde eu já tenha estado e para lugares cujas coordenadas eu sei com precisão. Fora isso, eu consigo me teleportar para junto de alguém com quem eu tenha algum laço telepático, pois aí eu uso a pessoa com referência para as coordenadas ou me teleporto no ar, acima do local, para não correr o risco de abrir o portal dentro de uma rocha ou algo assim. Coisa que não dá para fazer nessa caverna e, por mais que o mapa pareça estar bem feito, ele está longe de conter as latitudes, longitudes e profundidade do local.

– Deixando a preguiça do João de lado, pai…

– Ei! – protestou João.

– Continuando, deixando a preguiça do João de lado, – retomou Miguel, ignorando os protestos do irmão caçula  – você e o tio Sieg tiveram tempo de analisar as informações que as minhas primas e eu coletamos? Tudo parece confirmar aquilo que o Mestre da Guilda falou.

– De fato, filhote, parece mesmo. Principalmente se a informação que você conseguiu com a secretaria do tal político for verdadeira.

– Te garanto que é, pai, usei até aquela magia que o senhor usa para detectar mentiras.

– Embora nem precisasse, né primo? Do jeito que ela te olhava, te diria tudo… – provocou Rosa.

– Exatamente, acho que ela até te daria as três medidas dela se tu perguntasses – completou Jasmim.

– Não foi nem assim – protestou, sem graça, Miguel.

– Calma, primo, nós prometemos que ninguém contará nada para a Marin – brincou Karlon, se juntando às irmãs para provocar um totalmente sem graça Miguel.

– Crianças, deixem o vosso primo em paz – interveio Sieg, segurando o riso diante da situação. – E, Miguel, não se preocupes, ninguém falará nada.

– É irmão, o que acontece em Ahmix fica em Ahmix – debochou João.

– Ha-ha-ha João, muito engraçado você – resmungou Miguel.

– Bem, gente, se o show de comédia já acabou, sugiro irmos descansar – falou Lucca, tentando encerrar o assunto.

– Pai, só tem uma coisa com qual eu ainda não concordo: não gosto dessa sua estratégia de me manter “no banco de reservas” por assim dizer até chegarmos na câmara da rainha.

– Gala, filhota, é você que faz questão de manter a sua aposta com o bundão do “Conde Cagado”, não? Então, é melhor você estar descansada e na sua melhor forma na hora de enfrentar a rainha das aranhas. Sei que você não gosta de ficar parada enquanto os outros lutam mas esse assunto não se encontra em discussão – respondeu Lucca diante do protesto da filha.

– E não adianta olhar para mim, sobrinha, nesse ponto eu estou cem por cento fechado com o vosso pai – completou Sieg.

– Bem, não custava tentar né? – resignou-se Gala enquanto dava de ombros.

Seguindo a sugestão do Lucca, o grupo se retirou para os seus respectivos quartos e logo o dia da missão chegou.

03-

Se encontravam na porta do complexo de cavernas a “Comitiva dos Bianchis” (como João apelidara o grupo), um grupo de 8 aventureiros experientes escolhidos à dedo por Kenvaros e três soldados experientes que trabalhavam para o Conde e que iam juntos para garantir que a Gala cumprisse a aposta e enfrentasse a rainha sozinha.

Acompanhando eles ainda iam os dois grifos do grupo puxando dois carrinhos que seriam usados para transportar o possível tesouro.

Sem muitas dificuldades mas de maneira lenta e atenta o grupo foi avançando pelo complexo, com os aventureiros não conseguindo disfarçar o espanto diante da capacidade de luta dos Bianchi.

No horário programado eles chegaram no ponto previsto para acampar, um grande salão rochoso arredondado de pé direito incrivelmente alto que era cortado por um riacho subterrâneo e que possuía apenas duas entradas, o que facilitava defender o acampamento.

Junto da fogueira central do acampamento fora montado por Lucca e suas sobrinhas um grande poste de madeira com um cristal azulado translúcido no topo que seria o responsável por gerar um campo de força permanente em torno do acampamento, cabendo aos três apenas se revezarem na função de manter o cristal abastecido de magia.

– Tio, nós podemos cuidar disso sozinhas, vá descansar, o senhor lutou bastante hoje e garanto que vai lutar mais amanhã, só para garantir que a Gala chegue descansada na câmara final – falou Jasmim

– Eu agradeço a consideração, sobrinha, mas já te falei, vamos dividir o horário por 3 e isso não se discute mais. E o João e o Karlon virão fazer companhia a vocês nos seus horários. Pode me chamar de machista ou de super protetor, mas não confio em deixa-las sozinhas acordadas cercadas de homens que não conhecemos.

– Eu acho isso fofo, tio, não machista – sorriu Rosa. – E eu falei para a minha irmã que não adiantava discutir.

– Eu sei que tu falastes, mas, como diria a prima Gala, não custava tentar.

A noite passou tranquila e o grupo continuou avançando sem percalços até a câmara da rainha. Uma coisa que chamou atenção é que esta não era uma simples caverna, mas algo construído, com um arco de pedra e grandes portas de pedra pesada.

– Pelo jeito a história de isso aqui ter sido uma base avançada dos anões e depois um reino goblin antes das aranhas terem tomado conta do espaço não é mera história – comentou Lucca. – Da para ver caracteres anânicos e goblinoides gravados nas portas.

Antes que mais alguém falasse qualquer coisa, as portas se abriram aparentemente sozinhas revelando uma câmara cujo piso era coberto de pedras simetricamente encaixadas, paredes com colunas e tochas nestas e algumas pequenas portas nas laterais, deixando claro que era um lugar claramente construído e não um espaço natural.

No centro da câmara estava a rainha das aranhas. Era uma criatura de uns 4 metros de altura, cujo corpo, da cintura para baixo era o de uma aranha branca acinzentada, com um tronco humanoide no lugar de onde deveria ser a cabeça da aranha. Este corpo era coberto por placas também branco acinzentadas que formavam um exoesqueleto. Ela possui duas estruturas ovais no peitoral que lembravam seios e sua cabeça, situada no topo do tronco humanoide possuía seis olhos vermelhos escuros, uma boca grande cheia de dentes afiados e um cabelo negro que brilhava de tão sujo que caía pelas laterais da cabeça.

Por fim, a rainha usava um cinto formado de crânios humanos na cintura do tronco humanoide.

– Foram vocês que massacraram os meus bebês? Aventureiros tolos, entrem e encontrem a sua ruína – proclamou a criatura usando uma voz que mais parecia uma unha passando num quadro negro.

– Eu a enfrentarei sozinha, rainha e a derrotarei! – disse, num tom forte e desafiador, Gala enquanto se adiantava para entrar sozinha na câmara.

– Elfa tola mas corajosa! Em honra à essa coragem permitirei que se apresente para que eu nunca esqueça o seu nome.

– Eu sou Galawel Fornorimar Bianchi, princesa do Reino de Erdan, capitã da Guarda Real do Reino de Arlon e orgulhosa filha de Lukhz Bianchi e Ardriel Fornorimar.

– Seja bem-vinda ao meu reino e sua ruína, princesinha – sorriu a criatura.

Antes que fosse dito mais alguma coisa, a rainha usou uma teia disparada de uma das garras que ela tinha no lugar dos dedos da mão para puxar uma pedra que estava caída num canto e arremessar na direção de Gala, que desviou com certa facilidade.

Logo as duas se atracaram numa luta feroz. Lucca, reduzido à um mero espectador, tinha que se conter e conter os outros de intervir.

Gala atacava com precisão, mas sua adversária parecia estar sempre um passo à frente, como se soubesse o que ela ia fazer e contra-atacava com golpes das suas garras, com bolas de teia e com objetos arremessados do chão.

Logo a elfa se encontrava com o corpo todo dolorido, coberto de hematomas e com um corte no supercílio que dificultava ela de enxergar e ela se viu obrigada a recorrer à magia de cura, que, quando usada na própria pessoa a que a invocara aumentava a dor sentida por breves instantes.

A luta seguia num duelo de atrito com a criatura levando discreta vantagem quando Gala acertou, finalmente, um golpe na região onde deveria ser o coração dela mas, embora o golpe tenha sido preciso, a criatura pareceu não se abalar.

Galawel firmou os dois pés no peito da criatura e, pegando impulso, pulou para trás, junto com a sua espada, pousando junto do esqueleto de um falecido aventureiro.

– Elfa tola, eu não tenho coração como vocês, eu tenho um núcleo e eu posso deslocar esse pelo meu corpo à meu bel prazer – se vangloriou a rainha.

Não se deixando abalar pelas provocações da criatura, Galawel pegou a espada que jazia junto do corpo do falecido aventureiro, uma lâmina feita de uma boa liga, que com certeza tinha prata trabalhada na composição pois, por mais que a espada estivesse cheia de pó, a lâmina se encontrava perfeita, sem sinal de ferrugem.

Trazendo sua amada espada Flaitin numa mão e a espada recém adquirida em outra, Gala voltou a atacar sua adversária, como se fosse um furacão formado por lâminas afiadas.

Num primeiro momento parecia que o “jogo” havia virado mas logo a aranha se adaptou ao novo estilo de ataques da elfa.

– Tola, enquanto você estiver no meu campo de visão, você não conseguirá me derrotar, meus olhos mágicos conseguem prever os seus movimentos.

Gala quase sorriu ao se lembrar do que seu pai sempre dizia: “quanto mais arrogante o vilão, maior a chance de ele entregar os seus planos num discursão”.

– E se eu não tiver no seu campo de visão?

Dito isso, Gala se teleportou para trás da rainha, pronta para atacá-la por trás, mas esta virou a cabeça em 180 graus e começou a gargalhar.

– Essa teria sido uma boa ideia, princesinha, se o meu corpo fosse limitado como o seu, mas não deu. Se não estivesses lutando sozinha, quem sabe essa ideia funcionaria?

A criatura deu um tapa na elfa com sua imensa mão e a jogou longe. Gala se levantou, limpou o sangue que escorria do canto da boca com o dorso da mão.

“Só me resta o meu plano original de tentar sentir onde está o núcleo dela para acertar este. Mas ainda assim, mesmo que eu ache esse, como vou acertá-lo com ela prevendo os meus ataques. Se ao menos eu não estivesse sozinha…” – pensava Gala, enquanto se defendia dos ataques da adversária com a espada que pegara emprestada, uma vez que a sua espada pessoal fora jogada para outro canto do salão depois do último ataque.

“Anta! Você não está sozinha, ao menos não totalmente” – brigou ela consigo mesma, enquanto se ocupava em se manter viva – “Agora só preciso achar o bendito núcleo.”

Galawel aparentemente só se defendia, usando a espada e um escudo velho que ela juntara no chão, junto dos restos mortais de outro falecido aventureiro enquanto a criatura, cada vez mais confiante na sua vitória, só ia acossando a elfa contra uma das paredes da câmara.

– Confiem na irmã de vocês – disse Lucca enquanto impedia os seus filhos de entrar na câmara. – Ela com certeza tem um plano.

– Mas pai…. – tentou argumentar João.

– Filhote, lembra outro dia que vocês estavam brincando, dizendo que eu era o “Apex Predator” deste mundo e eu neguei? Bom, se eu tivesse que dar esse título para alguém em Noritvy, seria para a irmã de vocês.

– A Gala é mais fraca do que você, pai…

– E eu sempre ensinei a vocês, Miguel, que força não é tudo. Sua irmã é mais fraca do que eu fisicamente, mas isso não faz dela exatamente fraca. E a técnica sempre supera a força, eu sempre falei isso. E, sendo sincero, a irmã de vocês, hoje, na minha opinião, já é uma guerreira tecnicamente falando melhor do que eu. Eu tive um monte de conhecimento socado na minha cabeça e um treinamento relâmpago com o tio de vocês quando vim para cá. A sua irmã não, ela foi treinada com um refinamento do que foi embutido na minha mente, aquilo que eu consegui criar depois de anos, aquilo que vocês batizaram de “estilo arloniano de luta”, que seria um verdadeiro “estilo MMA” (mixed martial arts = artes marciais mistas). Claro, a base dela é o judô, do qual ela é faixa preta mas ela foi treinada desde cedo nessa arte refinada que eu criei à partir do que colocaram na minha cabeça.

– Sem falar que a vossa irmã é uma lutadora muito mais inteligente do que vosso pai e do que eu – completou Sieg, se metendo na conversa. – Ela ainda não ordenou para a espada dela retornar para a mão dela e, acreditem, isso deve ter um motivo.

Enquanto isso, a rainha continuava a pressionar Gala, já tendo quebrado o escudo, machucado o braço esquerdo dela, que segurava este. A criatura ergueu o braço e, com um golpe forte, conseguiu quebrar a lâmina da espada que a elfa usava.

– Pelo jeito chegamos ao fim do nosso embate – sorriu a grande aranha. – Devo dizer que foi uma luta divertida mas, no fim, uma de nós terá que morrer.

– Concordo, mas, acredite, não serei eu – respondeu, triunfante, Gala.

Antes que a rainha pudesse esboçar qualquer reação, a lâmina de Flaitin surgiu do meio do peito dela, tendo atravessado o tronco dela à partir das costas e o núcleo dela junto.

– Co-como? – perguntou a criatura no meio do seu suspiro final.

– Essa é Flaitin, a “lâmina fiel” num dialeto antigo. A minha espada pessoal que sempre retorna para mim quando eu invoco, percorrendo o caminho que eu determino. Eu só precisava determinar com precisão a posição do seu núcleo e nosso embate final me deu o tempo que eu precisava.

A rainha estrebuchou e caiu para o lado, morta. Gala, por sua vez, só não caiu no chão, desmaiada de cansaço pois fora aparada pelos fortes braços do seu pai, que a segurou com cuidado e começou a curar os ferimentos da filha imediatamente.

Os três soldados, ao ver que o duelo acabara, foram correndo reportar ao seu senhor o que acontecera, enquanto os demais presentes juntavam o tesouro que havia numa das salas laterais da câmara e, que, de fato, não era lenda.

Ao saírem da caverna, os Bianchis passaram na Guilda, onde deixaram o tesouro para ser contado e se dirigiram para o palácio onde o Conde residia. Pararam debaixo da varanda junto do escritório deste e tocaram um berrante para se fazerem anunciar.

Ragar levou um susto e saiu para ver o que estava acontecendo.

– Ah, são vós, bárbaros, que vieram atazanar a minha paciência. Pois bem, “princesinha”, cumpristes a nossa parte do acordo?

– Você já deve saber que sim, seus soldados já te contaram, com certeza. E, antes que eu me esqueça, tome aqui aquilo que você pediu.

Galawel arremessou um saco de estopa sujo na direção do Conde. Este, no susto, pegou este, sujando as mãos com o líquido viscoso que pingava deste. Ragar quase vomitou de nojo ao ver a cabeça da rainha das aranhas dentro do saco.

– Não pedistes a cabeça dela, Conde? Pois bem, ela é sua. Se me deres licença, estou com saudades de casa. Ah, fico no aguardo do seu pedido público de desculpas.

Gala e sua família se viraram e estavam já alguns passos de distância quando um funcionário chegou correndo no escritório do Conde e sussurrou algo no ouvido deste. Ele, possesso de raiva, gritou:

– ESPEREM! Onde vós pensais que estão indo sem minha autorização? Cadê o meu tesouro?

– Vosso tesouro, Conde? – perguntou Gala, segurando o riso com dificuldade pois ela bem sabia do que o Conde estava falando.

– Se fazeis de tola, “princesinha”, o tesouro da masmorra das aranhas, que, por direito, é do governo da Capitania e, por consequência, meu.

– Ah, é desse tesouro de que estás falando? Do meu tesouro, o senhor quer dizer, né? Afinal eu assumi a missão que o seu antecessor havia colocado lá na Guilda e, assim, o tesouro é, oficialmente, meu. Ele se encontra na Guilda, sendo contabilizado e, caso o valor dele não alcance o valor da recompensa, a Guilda entrará em contato com o governo da cidade para que este pague a diferença.

– Isso não ficará assim!

– Sinceramente, conde, usando uma expressão da terra natal do meu pai, eu estou pouco me f* para as suas ameaças. Passar mal.

Dito isso, Galawel voltou a se virar de costas para conde e retomou o caminho para a Guilda enquanto fazia um certo sinal com o dedo médio para o conde.

Alguns soldados fizeram menção de detê-los, mas diante da cara feia feita para eles por Lucca e Sieg, apenas recuaram.

– Tio, o senhor poderia me fazer um favor? – perguntou Gala enquanto eles caminhavam.

– Quantos precisares, minha sobrinha – respondeu Sieg.

– O senhor pode consertar aquela espada que usei na caverna? É uma boa espada e eu gostaria de guardá-la comigo.

– Será um prazer, minha sobrinha.

– Aliás, pai, o que faremos com o dossiê que as minha irmãs e o meu primo montaram sobre os podres do Conde? – falou Karlon.

– Bem, meu filho, eu deixarei este com o Kenvaros e este entregará para a oposição política.

– Alguma chance daquele engomadinho de merda entrar pelo ralo? – questionou João.

– Acredito que boas chances, filho – respondeu, desta vez, Lucca. – Ele pode até ser destituído do seu cargo de capitão e do seu título de Conde. E este passaria para o seu irmão mais velho, que só não o herdou de cara porque o pai deles também era um xenófobo preconceituoso e não quis passar o título para o filho que desafiara ele para casar com uma meia anã negra. Mas isso não nos dirá mais respeito assim que pisarmos fora dessa cidade.

A “comitiva” passou na Guilda, pegou o tesouro, que superava o valor mínimo da recompensa mínima estabelecida, passou na Estalagem, pagou suas contas, recolheram as suas bagagens que ainda estavam nela e, graças à um portal de teleporte criado por Lucca, rapidamente chegaram ao palácio de Erdan.

Um mês depois o palácio real de Erdan recebeu duas cartas formais vindo de Ahmix. Uma era do novo Capitão Regente, que se apresentava através desta ao Rei e que se mostrava mais do que disposto à estreitar ainda mais os laços entre as duas nações e a outra era do novo Conde Fioriz, Fortez Fioriz, que vinha à ser o irmão mais velho de Ragar que escrevera pedindo desculpas à Galawel pelas ofensas proferidas por seu irmão caçula e pela atitude covarde deste em não cumprir a sua parte no acordo estabelecido entre eles.

Extras:

Caso tenhas curiosidade, caro leitor, eu fiz no FH imagens do “Conde Cagão” e da Rainhas das Aranhas que podem ser visualizadas clicando respectivamente aqui e aqui.



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