O Retorno do Urso

Um elfo, forte, com um porte mais largo do que a da maioria dos elfos, com cabelos castanhos cor de mel cortados curtos e mal penteados, com sobrancelhas grossas e braços peludos (características incomuns para um elfo), usando roupas um tanto quanto surradas se encontrava parado diante do portão do Palácio Real de Arlon.

– Hunf – bufou ele. – Bem que o velho dragão me falou que eu não reconheceria Arlon quando a visse, afinal, a última vez que estive aqui isso aqui não passava de uma pequena vila.

Ele ajeitou a mochila nas costas e caminhou em direção ao portão. Quando estava prestes a atravessar este, foi barrado por dois guardas que portavam grandes alabardas.

– Alto lá, forasteiro, quem és tu para entrar assim ser anunciado? – indagou um dos guardas.
– E eu preciso ser anunciado para entrar na casa de um velho amigo?
– Se este velho amigo for o nosso rei, sim, precisas.
– Pois bem, fale ao vosso rei que Urs, o urso, capitão dos Cavaleiros da Rosa, fiel companheiro dos bravos reis Genaro e Alaria está aqui para vê-lo.

Mais tarde, numa sala do Palácio de Arlon, Lucca rodava de um lado para outro, visivelmente ansioso enquanto sua esposa Ardriel e sua filha Galawel tentavam acalmá-lo.

– Eu, definitivamente, deveria estar lá no salão.
– Calma, meu amor, meu pai e meus tios sabem se virar eles são as únicas pessoas vivas que o conheceram além da Vó Alaria, quer pessoas melhores para julgar a situação?
– De fato tens razão, mas você tem que concordar que essa historia do Urs reaparecer vivo, depois de mais de um milênio é muito estranha, não é mesmo?
– Sim, mas, ao mesmo tempo, ninguém viu o corpo dele, só nos guiamos pelo que o Greener nos contou.
– Greener?! Pelo jeito não é de hoje que aquele jacaré vitaminado apronta das suas…

Lucca levou a mão a testa e fechou os olhos por alguns instantes.

– Falou com ele, pai? – perguntou Galawel.
– Sim, ele primeiro tentou me despachar, dizendo que estava enrolado, mas eu lembrei a ele, com jeitinho, que ele ainda me “deve” umas bolsas de couro de dragão por causa da confusão que ele armou envolvendo os seus irmãos e ele se prontificou, de maneira bem solicita, a vir o mais rápido possível.
– Bem solicita, sei, pai….
– Enfim, cansei de esperar, eu vou entrar naquela sala agora.
– Pai, calma, você tinha prometido esperar a Vó Alaria para entrar junto com ela.
– Exato, querido, tens que convir que o fato de seres parecido com o Genaro pode criar alguma confusão na cabeça dele se a minha bisavó não estiver por perto.
– Eu sei, amor, mas é que eu estou cansado de esperar.
– Se é a mim que esperavas, meu neto, então não precisa esperar mais – falou Alaria que havia entrado na sala e se aproximado do grupo sem ser notada.
– Vó, como sempre a senhora chega na hora certa – sorriu Galawel. – E, ué, a senhora não está vestindo o seu hábito hoje?
– Se este lá dentro for mesmo o Urs, eu quero que ele me veja como estava costumado a ver no passado. Eu chegar vestida de freira pode criar confusão na cabeça dele, que, bem, desculpa a sinceridade, nunca foi das mais brilhantes.

Acompanhados agora de Alaria o grupo finalmente entrou na sala onde Urs conversava não só com os reis de Arlon, mas também com o rei de Erdan, que havia se teleportado para lá quando soube do ocorrido.

Urs parecia estar contando uma história todo empolgado quando notou Alaria entrar no salão, tendo Lucca ao seu lado direito e Ardriel ao seu lado esquerdo. O sisudo elfo correu na direção dela, se ajoelhou aos pés desta e beijou a mão dela.

– Minha rainha, como sempre, contínuas a ser uma luz para esses meus brutos olhos. E este, ao seu lado, quem é? Por um momento pensei que fosse o meu rei, mas este à muito já é falecido.
– Eu fico feliz em vê-lo vivo e com saúde, meu velho amigo. E, respondendo à sua pergunta, este rapaz ao meu lado é Lukhz Bianchi, bisneto do meu falecido marido, descendente do primeiro casamento dele e genro do Rei Tauron, marido da minha bisneta Ardriel, a dama que está aqui ao meu lado.

O elfo se levantou e ficou avaliando Lukhz e Ardriel de cima à baixo, como se inspecionasse o casal.

– De fato a jovem herdou a vossa beleza, minha rainha, mas o rapaz, pensando bem, olhando bem, parece muito pouco com o meu falecido rei. Meu rei tinha um porte mais nobre, não era tão comprido e desengonçado e tinha um ar mais másculo e não esse rosto imberbe, liso que parece o rosto de um bebê ou de uma dama.
– Bom, ser chamado de imberbe e afeminado por um elfo que, devido ao porte e à aparência mais parece a cruza malfeita de um anão com um orc para mim é um elogio – retrucou Lucca.

Urs ficou encarando Lucca por alguns segundos até que explodiu numa grande gargalhada.

– Ele pode não ter herdado a aparência do meu rei, mas pelo menos herdou a coragem e a língua solta dele.

Diante do comentário do velho guerreiro, Lucca, Ardriel e Galawel se voltaram com um certo espanto para Alaria.

– Bem, meus netos, não acreditem em tudo que se conta – riu Alaria. – Meu marido estava longe de ser o homem perfeito que as lendas descrevem, ele também tinha seus momentos de ironia e de língua solta, exatamente como o Lukhz. Acredite, meu neto, até nisso vós sois parecidos.
– Se a senhora diz, vó, eu não duvidarei, mas realmente não é algo que imaginária – sorriu Ardriel.

Urs ficou mais algum tempo de conversa com os reis e com a ex-rainha Alaria até demonstrar sinais de cansaço, tendo sido conduzido à um cômodo onde pode tomar banho e dormir.

No dia seguinte, Alaria conversava com Galawel e Ardriel num dos vários escritórios que existiam no palácio.

– Minha neta, afinal, o seu marido descobriu a verdade sobre o retorno do Sir Urs?
– Sim, Greener contactou ele e relatou tudo e o Lukhz até o dispensou de aparecer por aqui.
– Tá, mãe, mas o que afinal ele contou para o papai?
– Segundo ele, Urs, quando foi dado como morto, de fato estava nas terras dos dragões verdes ajudando a combater um mago maligno. Este mago soltou uma estranha magia na direção de Greener e Urs tentou aparar a magia com a espada e essa magia, que possuía a forma de uma esfera cinza chumbo, o engoliu e ele desapareceu por completo. Greener imediatamente achou que o Urs tinha sido desintegrado pela magia, até porque o bandido ficou dizendo que eles nunca mais o veriam. Só que, na verdade, a esfera o aprisionou num sono profundo numa dimensão compacta, era um feitiço feito para criar uma prisão perfeita. Só que ele acabou acordando à coisa de algumas semanas atrás e ele começou a espancar as paredes da tal dimensão. Um jovem dragão que passava pela região sentiu a perturbação no campo mágico local e chamou Greener que acabou por libertar Urs da sua prisão.
– Ele tentou aparar um feitiço com a espada dele, mãe? Bem que a vó Alaria disse que pensar não era o forte dele. Aliás, vó, não foi só por isso que a senhora nos chamou aqui, foi?
– Não, não mesmo Galawel, foi para mostrar isso aqui.

A elfa anciã abriu uma caixa em formato de canudo que ela carregava consigo e de dentro dela tirou algo que parecia uma tapeçaria. Ela desenrolou essa na mesa do escritório e esta se revelou na verdade uma pintura onde se via quatorze pessoas enfileiradas.

– Esses são quem eu penso que são, vó? – perguntou Alaria.
– Sim, minha neta, esta é a única pintura que reúne todos os membros da Ordem da Rosa original.

Meio que adivinhando o que as duas elfas mais novas iam perguntar, Alaria foi apontando para as pessoas na pintura, da esquerda para direita, falando seus nomes e falando um pouco sobre eles:

“O primeiro de todos aqui era Sir Ferdinan, conhecido como o corajoso, um bravo rapaz vindo do litoral do que hoje é Erdan. Deixou crescer esse bigodinho que eu particularmente achava ridículo porque os outros “meninos” do grupo brincavam que não dava para diferenciar ele da irmã dele quando ele estava de rosto liso.

Sua irmã gêmea, por sua vez, está representada ao lado dele, Prisca era o seu nome era até mais corajosa do que o seu irmão. Não se importava de ser chamada de baixinha e não liga quando provocavam sobre o tamanho dos seus seios, dizia que peitos grandes só serviam para atrapalhar na luta.

Ao lado deles está o seu primo, Gastão, um belo homem de pele escura, que herdara do seu pai, um corajoso marinheiro que imigrara do distante sul do continente central e se casara com a irmã do pai de Ferdinan e Prisca. Se considerava um presente divino para as mulheres e não podia ver uma que já queria cantar.

Curiosamente, embora os três fossem humanos e, em tese, destinados a viver menos que todos os outros, morreram todos os três de velhice e tiveram o desprazer de enterrar alguns dos seus amigos e companheiros de ordem.

Ao lado de Ferdinan, usando esse curioso capuz de lobo está representado Baldric, auto intitulado “Baldric o bravo”, um meio elfo que dizia ter vindo do norte, ser de uma tribo de caçadores de lobo de lá e primo de Svarog, que negava o parentesco e a existência da tal tribo de caçadores. Era o mais jovem de nós, mais jovem até do que os humanos, tratado por todos nós como um irmão caçula e foi o primeiro de nós a falecer. Meu Genaro, que gostava dele como se fosse um filho, ficou arrasado, mas nada pode fazer para caçar justiça por estar presos às suas tarefas reais. Coube a Svarog, Cenric e Urs virarem o continente do avesso atrás do assassino, que veio à encontrar o seu fim diante do fio do pesado machado de Svarog.

Após Baldric, temos Tanith, a silenciosa, uma meio elfa cuja cicatriz de uma luta com um orc dificultou a fala dela, mas ela não precisava de palavras para se expressar em batalhas. Era nossa espiã e responsável por ir na frente do nosso grupo, descobrindo pistas e levantando fatos que fossem uteis para nós.

Sir Jarek, um bravo meio elfo conhecido como o forte. Usando um termo que eu aprendi com o meu neto Lukhz, era o “tank” do nosso grupo, a nossa vanguarda, sempre disposto a servir de escudo vivo para os seus companheiros. Era, provavelmente, de fato, o mais forte de todos nós, talvez somente Urs se igualasse a ele em força. Serviu como capitão da guarda real de Sudher e como meu guarda costa por muitos e muitos anos. Se casou, quem diria, com Tanith e ambos morreram de velhice, com uma semana de intervalo.

Eu e o meu Genaro dispensamos explicações, não é mesmo?

Deixa-me partir então para esse meio elfo de cabelos brancos e ar emburrado à esquerda do Genaro. Svarog, o inteligente, era um meio elfo vindo do norte e, que, em certos aspectos, era muito parecido com o meu neto Sieg. Era o nosso estrategista e o grande “irmão mais velho” de todos nós. Era também um artífice de primeira linha e o responsável por boa parte do nosso equipamento. Veio a falecer em batalha, lutando contra uma horda de goblins para salvar uma caravana de comércio.

Lady Zahra, a meio elfa retratada à esquerda de Svarog, era conhecida como a precisa, nunca tendo errado uma flecha sequer na sua vida e isso porque ela viveu séculos, sendo uma das últimas de nós a falecer. Era uma caçadora nata, que crescera nas florestas da planície oriental e que veio para a região onde hoje é Erdan em busca de novos desafios e novas criaturas para caçar.

Cenric, o destemido, o meio elfo de tapa olho e cicatriz na face à esquerda de Zahra era um escravo obrigado a lutar numa arena de gladiadores numa cidadezinha na entrada do Grande Deserto do Sul quando eu e o meu marido o resgatamos e ele nos jurou fidelidade eterna. Morreu defendendo o meu Genaro, que já se encontrava idoso, do ataque de um nobre descontente com a decisão que o meu marido havia tomado.

Hendrik, o bom, a pessoa seguinte a ser retratada na pintura, era um nobre elfo de cabelos cor de sangue e um excelente espadachim. Foi o último de nós a vir a falecer e, quando ele faleceu, em tese, eu me tornei a última sobrevivente da Ordem. Foi morto pelo seu tio, Ardriel, aquele que veio a ser conhecido como o “Rei Maldito” de Sudher, a quem ele havia treinado como espadachim desde novo. Ele acreditou até o fim de que seria capaz de convencer o seu pupilo a mudar de ideia, mas acabou morto pelas mãos de um rapaz a quem ele amava como um filho. Ali nós soubemos que não havia mais salvação para o meu neto.

Novamente não preciso falar do Urs, quem vocês já tiveram o prazer de conhecer e, por fim chegamos à última pessoa da pintura, Einar, o autointitulado “o formoso”, o único mago do nosso grupo e um elfo que se proclamava um “amante das pessoas bonitas”. Se Gastão não podia ver mulher, bem, Einar não fazia esse tipo de distinção, paquerando homens, mulheres, anões e alados. Acabou morto por um anão bardo que era seu amante, num ataque de ciúmes.”

– E esses foram os quatorze bravos que fizeram parte da Ordem da Rosa original.

Antes que mais alguém conseguisse comentar alguma coisa, um esbaforido cadete da guarda real invadiu o escritório procurando pela Galawel.

– Capitã, capitã, você precisa vir urgente para o pátio de treinos.
– Acalme-se, cadete, o que houve?
– Creio que não há muito tempo para calma, capitã. Como a senhora sabe, o vice capitão estava comandando os treinos da manhã quando aquele elfo estranho que está visitando os reis começou a querer se meter no treino. Vosso pai, que passava por ali, não gostou dos comentários dele e os dois começaram a discutir. Vosso tio, o Duque Siegfried, estava tentando intervir, mas acho que ele não terá muito sucesso.

Diante do relato, as três damas saíram correndo do escritório acompanhado o cadete. Ao chegar no pátio encontraram Lucca e Urs numa disputa de queda de braço, com Sieg servindo de juiz.

– Antes que me perguntem, essa foi a solução mais pacífica que eu arranjei- comentou o elfo.
– Pelo jeito o Urs não é só papo não, ele tá conseguindo fazer o meu pai suar – retrucou Galawel.
– É, minha neta, mas vós estais olhando apenas para o vosso pai, eu sugiro que repares em Urs também.

A jovem oficial fez como Alaria sugerira e, de fato, havia uma grande diferença entre os dois que participavam daquela contenda. Lucca realmente começava a apresentar algumas gotas de suor na testa, mas, Urs, por sua vez, já se encontrava lavado de suor, com o rosto ainda mais vermelho do que o normal e com as veias do pescoço e do rosto saltadas.

– De fato, vó, se algum dos meus irmãos estivessem aqui, já teria dito que o Urs está com uma cara de quem tá com prisão de ventre e fazendo força para evacuar…

Antes que Alaria conseguisse retrucar o comentário de Galawel um estrondo se fez ouvir quando Lucca finalmente conseguiu derrubar o braço de Urs e rachar a mesa ao mesmo tempo.

Todos ficaram em silêncio, esperando a reação do sisudo elfo, mas ninguém esperava que essa fosse uma sonora gargalhada.

– Rapaz, de fato não és só garganta. Como combinado anteriormente, eu retiro tudo o que disse e peço desculpas pela minha grosseria.

Urs se retirou do pátio e foi seguido por Alaria, que achou por bem ir conversar com o velho companheiro.

Mais tarde, à noite, depois de um jantar no castelo, os dois conversavam numa das varandas deste.

– Partirás mesmo amanhã? Não tenho como convencê-lo a ficar?
– Minha rainha, bem sabes que eu nunca fui de ficar muito tempo parado num mesmo lugar. Consegui ficar algum tempo graças à companhia dos nossos companheiros de Ordem, mas estes à muito se foram. Arlon não precisa de mim, para mim isso está bem claro, Sudher, ao menos como conhecemos, se foi, mas tenho certeza de que ainda há neste grande mundo gente que precisa da ajuda deste velho guerreiro. Não se preocupe, vosso neto me aconselhou a me inscrever na tal “Guilda de Aventureiros” para usar como um meio de me manter em contato com a senhora e eu o farei. E, quem sabe, nas minhas viagens, eu não encontre novos companheiros dignos do nosso legado? Já encontreis um novo “Cavaleiro Branco” e uma nova “Dama Vermelha” e até mesmo um novo “Svarog” na forma daquele teu neto barbudo, quem sabe há por aí outros 11 guerreiros prontos para nos suceder só esperando pela orientação certa?
– Se essa é a vossa decisão final, meu amigo, eu a respeitarei e rezarei por ti todos os dias – falou Alaria, visivelmente triste por saber que talvez nunca mais visse o velho amigo.
– Por favor, faça isso, minha senhora.

Urs fez uma mesura e se retirou para seus aposentos. No dia seguinte, junto do raiar do sol, de maneira discreta, evitando novas despedidas emocionadas, o elfo partiu rumo à novas aventuras.

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