Os Cavaleiros da Rosa

– Vai, mãe, conta uma história para eu dormir, por favor!

– Gabriela, você já tem dez anos, não está meio grande para ouvir história para dormir?

– Não.

– E por que eu?

– Porque você conta histórias melhor que o papai.

Ardriel olhou para a filha adotiva, uma encantadora menina com olhos e cabelos castanho-dourados, cada dia mais parecida com o pai, Lucca. Arrumou a franja do cabelo que insistia em cair no rosto da menina, suspirou e, com um sorriso, falou:

– Está bem, você venceu. Agora, que história você quer ouvir?

– Me conta sobre os cavaleiros que ajudavam o meu tataravô, o que foi rei…

– Ah, os Cavaleiros da Rosa?

– Esses!

– Mas o que queres ouvir sobre eles?

– Tudo!

– Tudo é muita coisa filha.

– Tá, então conta uma versão resumida, ué….

A princesa começou a rir diante do pedido da filha…

– Você é uma figura, filha. É mesmo filha do seu pai.

– Que bom, né? Já não sou filha da senhora, se eu não fosse filha dele, ia ser filha de quem?

– Você é minha filha, Gabriela. Pode não ter saído de dentro de mim como os seus irmãos, mas você está tão dentro do meu coração quanto eles, viu? E nunca aceitem que o digam o contrário.

– Tá bom, mãe – sorriu a menina. – Mas eu quero a história, viu?

– Tá certo, filha, já vou começar…

Ardriel suspirou, como se pegasse fôlego e começou a contar a história que a filha desejava ouvir:

“Antes que eu conte a história dos cavaleiros, é necessário entender por que um grupo de cavaleiros, bravos e corajosos, adotou uma flor como um símbolo. E essa, minha filha, é uma bela história de amor.

Conta-se que uma grande sombra se espalhara sobre o continente de Noritvy, nossa terra natal. Sem achar alguém lá que fosse digno de um grande poder que lhe permitiria liderar as forças do bem, o grande mago Greyhund veio a este mundo, onde nós vivemos, em busca de alguém digno e, para o bem de todo o continente, ele achou. Genaro era então um simples marinheiro de trinta e nove anos, viúvo, que trabalhava num navio no grande rio Paraná. Triste com a morte da esposa, ele deixara seus dois filhos pequenos, Giuseppe e Catarina para sua irmã mais velha criar e foi trabalhar num navio e lá pretendia ficar até morrer, só que quis o destino que Greyhund o encontrasse e fizesse ele uma proposta.

De cara o marinheiro achou que Greyhund fosse somente um ‘velho maluco’, mas resolveu dar uma chance a ele e, como nunca fora de virar as costas para quem precisava, aceitou a proposta que lhe fora feita. Genaro levou um susto ao chegar a Noritvy. De fato, era uma terra totalmente diferente do que ele conhecia, com estrelas diferentes e três luas no céu. E não só o céu estava diferente, ele mesmo estava mais moço, como se o relógio do tempo tivesse voltado para trás vinte anos e forte como nunca fora.

Trazendo ainda a dor da perda da sua esposa no coração, logo que chegou ao novo mundo, Genaro tratou de se concentrar na sua missão e se tornou um cavaleiro incansável, estando onde a esperança era necessária, lutando como um verdadeiro exército de um homem só e levando, entre as batalhas, uma vida celibatária e quase monástica.”

– Monástica, mãe? Celibatária o papai me explicou outro dia…

– Uma vida monástica, filha, é uma vida como a de um monge, simples, sem luxos ou excessos.

– Entendi.

“E assim Genaro achou que seria a sua nova vida, mas quis o destino lhe pregar mais uma peça. Viajava ele sozinho pelo grande delta quando avistou uma dama a se banhar no rio. Não querendo assustá-la e nem parecer um tarado pois ela estava nua, ele se escondeu num bosque próximo e ficou esperando-a sair do rio e se vestir. Quando ela finalmente fez isso ele pode observá-la melhor e viu que era a mulher mais linda que ele já vira até então. Uma elfa alta de olhos e cabelos escuros como a noite, que usava um simples, mas requintado vestido, trazendo uma grande espada presa em sua cintura e um escudo pendurado em seu cavalo.”

– Essa moça era a Vó Alaria?

– Exatamente, filha. Posso continuar a história?

– Deve!

“Impressionado com a beleza da dama e não querendo chegar de mãos abanando, Genaro colheu algumas rosas silvestres que cresciam no chão e, num sinal de boa fé, deixando suas armas junto de seu cavalo foi até a moça.

– Boa tarde, nobre dama, por acaso, estás perdidas? Precisas de alguma ajuda? – perguntou ele enquanto estendia as flores para ela.

– Agradeço a gentileza, cavaleiro, mas não estou perdida, nasci e cresci nessas terras. Conheço-as como a palma de minha mão. Agora, creio que o senhor não me disse o seu nome.

– Genaro Bianchi, às suas ordens – respondeu ele, fazendo uma mesura.

– Então, você é o lendário cavaleiro que vem liderando a luta contra as trevas de quem tanto ouço falar, que derrete o coração das moças por onde passa sem nem prestar atenção nelas? – comentou ela enquanto fazia uma breve inspeção visual do cavaleiro.

– O lendário é por sua conta, minha senhora, mas, sim, sou eu este Genaro Bianchi de quem te falaram. Quanto ao coração das moças, minha senhora, bem, apesar de parecer novo, eu já fui, um dia, casado e por isso, digamos, o meu coração esteja fechado.

– Desculpe a indiscrição, mas por acaso sua esposa lhe deixou? Pois falastes com um ar tão triste.

– De certa maneira, sim, minha esposa me deixou. Minha Marieta faleceu de peste na distante terra onde eu residia.

– Desculpe minha pergunta, eu não quis trazer à tona lembranças tristes.

– Não há por que se desculpar, minha senhora. Façamos o seguinte: me diga vosso nome e estaremos quites.

– Realmente, eu não me apresentei. Que falta de educação a minha. Eu sou Lady Alaria, filha de Antigon, Rei Uno dos elfos e Senhor do Território Livre do Grande Delta.

– Então, estou diante de uma verdadeira princesa. Queria eu poder presenteá-la com algo mais digno do que simples flores.

– Bobagem, o que importa é gentileza por trás do ato, cavaleiro, e não o valor do presente. Além do mais, saiba que rosas silvestres são minhas flores favoritas – retrucou a princesa enquanto cheirava as flores. – O que lhe trazes aqui, tão distante das linhas de batalha?

– Vim me encontrar com o vosso pai.

– Estou indo ao encontro dele, casualmente. Me darias o prazer de sua companhia, Sir Genaro?

– O prazer é meu, minha senhora, e, por favor, é só Genaro, eu sou apenas um humilde marinheiro tentando ajudar quem precisa e não um nobre ou um cavaleiro.

– Para mim, a nobreza está nos atos, Genaro, e não num pedaço de papel ou de terras. Todavia, se preferes apenas Genaro, que assim seja, mas com uma condição.

– Qual?

– Me chames apenas de Alaria, nada de “dama”, “minha senhora”, ou “princesa”.

– Como desejares.

Eles cavalgaram juntos e em algumas horas alcançaram a casa do rei Antigon. Genaro permaneceu lá por um mês tentando convencer o rei a se unir à luta contra as trevas. Quando finalmente o conseguiu, voltou para o fronte de batalha acompanhado de Alaria, que partia decidida a abrir o coração daquele cavaleiro e fazê-lo dele seu.

Demorou, mas Alaria conseguiu seu objetivo e conquistou o amor daquele homem por quem se apaixonara à primeira vista. Juntos, eles lideraram uma tropa que se tornou famosa em todo o continente: o Exército Livre de Noritvy. Essa tropa, liderada também por um grupo de fieis cavaleiros, foi fundamental na derrota dos servos das trevas e, mesmo depois da derrota destes, continuou agindo, viajando por todo o continente e ajudando quem precisava.

Por sugestão de seu já então sogro, Genaro resolveu criar, juntos com os seus companheiros, um grupo de cavaleiros, uma irmandade destinada a espalhar o ideal da justiça pelos quatro cantos do continente. Originalmente, Genaro queria batizá-los de “Cavaleiros Livres”, mas os seus próprios companheiros, inspirados pela história de amor que unira Genaro e Alaria, amor este que fora fundamental para a existência daquele grupo, decidiram pela escolha do nome “Cavaleiros da Rosa”.

E por décadas os cavaleiros prestaram auxílio a quem precisava de ajuda. Mesmo depois da coroação de Genaro e Alaria, os cavaleiros continuaram a ser aquilo que eram no início, uma irmandade de cavaleiros e amazonas unidos por um ideal: ajudar e proteger quem precisasse, independente de raça, cor, credo ou nacionalidade.”

– Por décadas, mãe?

– Sim, décadas, filha. A maioria dos cavaleiros eram elfos ou meio elfos, assim décadas para eles não era um tempo muito grande. E os que eram humanos, muitos acabaram sucedidos por seus filhos ou seus netos com o passar do tempo.

– O papai disse que o fim deles foi meio triste.

– Exatamente. Não gosto nem de lembrar.

– Conta, vai…

– Tá bom, eu sei que você não vai se contentar se eu não contar.

– É obvio, mãe.

“Por muitas décadas eles agiram e, mesmo depois da morte de Genaro, eles continuaram se reunindo, cada vez menos, mas ainda assim se reuniam e continuaram a viajar por todo o continente de Noritvy espalhando o bem pelo mundo. Os fundadores da ordem foram morrendo aos poucos, alguns em batalha, outros de velhice. Minha bisavó Alaria é a última fundadora da ordem viva. E o último a morrer foi Sir Hendrick, um bondoso elfo que havia sido companheiro de Genaro e Alaria na guerra e havia ajudado a treinar os filhos deles e os filhos dos filhos deles. Minha mãe mesmo aprendeu a lutar espadas com Sir Hendrick. Ele acabou morto pelo meu tio, aquele cujo nome foi banido da história quando tentava convencê-lo a se arrepender dos seus atos e se entregar. Foi ali que o chamado ‘Rei Negro’ de Sudher selou o seu destino. Aqueles que ainda acreditavam que ele era capaz de se regenerar perderam a esperança quando Hendrick, que era conhecido como ‘o bom’, foi morto por um garoto a quem ele amava como um filho.”

– Que triste, mãe.

– Eu falei que era triste. Mas, o mais importante é o exemplo de coragem e dedicação que aqueles quatorze cavaleiros e amazonas, que numa noite chuvosa se reuniram em torno de uma mesa redonda, nos deixaram.

– Mesa Redonda? Que nem a do rei Arthur?

– Exatamente, seu tataravô era um fã das lendas do rei Arthur.

– E qual era os nomes deles, mãe? Dos quatorze que fundaram a ordem. A senhora sabe?

– E como eu ia esquecer?

“Os quatorze eram quatro humanos, quatro elfos e seis meio elfos. Os líderes eram, como você deve imaginar, seu tataravô, Sir Genaro, que ficou conhecido como ‘o leal’ e sua esposa, Lady Alaria, que ficou conhecida como ‘a fiel’. Os humanos, fora seu tataravô, eram Lady Prisca, ‘a audaz’, admirada por ser uma humana em meio a elfos e meio elfos, Sir Ferdinan, ‘o corajoso’, irmão gêmeo de Lady Prisca, e Sir Gaston, conhecido como ‘o belo’, primo de Prisca e Ferdinan, filho da tia deles com um bravo guerreiro negro que havia emigrado do distante sul. Os seis meio elfos eram Sir Jarek, ‘o forte’, Sir Baldric, ‘o bravo’, Sir Cenric, ‘o destemido’, Sir Svarog, um meio elfo vindo do norte e conhecido como ‘o inteligente’, Lady Tanith, ‘a silenciosa’, e Lady Zahra, ‘a precisa’, conhecida assim por nunca errar um tiro de arco e flecha. Por fim, os elfos eram, além da Alaria, Sir Hendrick, ‘o bom’, Sir Einar, ‘o formoso’, e Sir Urs, ‘o urso’, assim conhecido por sua força e aparência.

Mas, mais importante do que lembrar o nome deles, filha, é lembrar o exemplo de coragem, justiça e honestidade que eles nos deixaram. Além disso…”

– …filha? É acho que ela dormiu finalmente.

Ardriel deu um beijo na testa da filha, se levantou, arrumou o lençol sobre ela, desligou a luz da cabeceira e encostou a porta do quarto ao sair.

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