O filho do meio

Um dia qualquer no Rio de Janeiro. Mãe e filha assistiam TV na sala de casa, a mãe uma mulher de quarenta e sete, mas que facilmente parecia ter trinta, a filha uma moça de quase dez anos, alta para a idade. Ambas com um lindo cabelo loiro-platinado e donas de uma beleza que qualquer pessoa poderia dizer tranquilamente que não era desse mundo. E, de fato, ambas não eram desse mundo, tendo ambas nascidas num mundo muito similar à Terra, mas bem diferente em outros aspectos, conhecido apenas como Noritvy. E se os cabelos prateados de ambas já chamavam atenção na Terra, quanto mais no seu mundo natal, onde assumiam a sua verdadeira cor: um lindo azul piscina com brilho metálico.

– Mãe?

– Sim, Megan?

– Eu estava pensando. Semana que vem é a festa de quinze anos do Guilhermo. E também a comemoração dos dez anos de adoção dele, certo?

– Certo. Mas isso, como diria o seu avô, você está “careca de saber”, filha.

– Sim, mãe, mas tem uma coisa que eu não estou careca de saber…

– O que?

– Como o Guilhermo foi adotado. Afinal, quando eu nasci ele já fazia parte da família…

– A gente nunca te contou?

– Não. E já que a gente está à toa, que esse filme na TV tá chato, bem que você podia aproveitar para me contar, né?

– Você não vai parar de me perturbar até eu contar, né minha filha?

– Exatamente – sorriu a menina.

Marin suspirou, arrumou os cabelos, sorriu e começou a contar a história que a filha tanto queria ouvir:

– Ok, você venceu – disse Marin. – Nós encontramos, quer dizer o seu pai encontrou o seu irmão uns dois meses antes de você nascer.

– Encontrou? Como assim? Eu achei que as crianças órfãs morassem em orfanatos e lá os adultos as pegassem para criar ou assim a vovó Dri me ensinou outro dia.

– Sua avó não lhe ensinou errado, filha, e é isso que ocorre na maioria dos casos, mas não foi o caso do seu irmão.

– E como foi então?

– Calma, vou chegar lá…

“Faltavam mais ou menos dois meses para você nascer. Nós nos encontrávamos visitando os seus tios bisavós, os reis de Arlon no palácio deles. Enquanto eu tomava um chá com sua avó Ardriel, com sua tia Gala e com a rainha, seu pai resolvera dar uma passeada pela cidade e comprar algumas frutas numa barraca que ele já conhecia, numa feira que ficava perto do palácio e que era famosa pelas suas frutas exóticas. E como sempre fazia, para desespero da sua tia Galawel, que é em parte a responsável pela segurança da cidade, o seu pai saíra sem seguranças.

Bem, estava lá ele a escolher algumas frutas e a conversar com o feirante quando sentiu alguém meter a mão no seu bolso, tentando roubar a sua carteira. O ladrão era bom e bem silencioso e talvez tivesse tido sucesso com alguém que não tivesse recebido o treinamento que o seu pai recebeu, mas o seu pai percebeu o que ocorria.

Sem se exaltar ou falar nada, ele simplesmente agarrou o pulso do ladrão e qual não foi a surpresa dele ao ver que o ladrão não passava de um jovem elfo de mais ou menos cinco anos, cabelos negros e uma pequena cicatriz na bochecha.”

– Cicatriz na bochecha? Ué, era o Gui que tava tentando roubar o nosso pai?

– Exatamente.

– Mas por quê?

– Calma, eu vou chegar lá, se você deixar, filha.

– Eu deixo, mãe, só continua.

– Ok, então tá…

“A criança, quer dizer, o seu irmão, tentou se soltar desesperadamente do seu pai, mas obviamente não tinha como uma criança de cinco anos se soltar. Quer dizer, ele chegou a morder a mão do seu pai e se soltar por instantes, mas ele logo o pegou com a outra mão.

Seu irmão gritava, pulava e implorava e nada do seu pai soltar.

– Moço, me deixa ir, se eu não voltar o Patrão vai brigar comigo – implorou ele.

– O patrão é o seu pai? – perguntou o seu pai.

– Não, o patrão é o patrão, é tio que cuida na gente, nos dá roupa e nos bate se a gente não leva presente para ele, tio. Deixa voltar, deixa, o patrão vai ficar brabo se eu não voltar e eu tenho medo do patrão brabo. Deixa, vai?

– Não. Você não vai a lugar algum, garoto.

Ao ouvir o seu pai dizer não e, provavelmente assustado com o que poderia acontecer, o seu irmão começou a chorar alto, mas muito alto mesmo. Tal choro alto acabou por atrair atenção de dois guardas da cidade que passavam pelo local. Um deles logo reconheceu o seu pai e perguntou o que podia fazer por ele.

– Procurem pelo tal “patrão” ou por alguma outra criança que esteja sozinha na região. Duvido que fossem deixar uma criança de cinco anos agir sem nenhuma supervisão – respondeu seu pai.

– E o garoto, alteza? O que senhor queres que façamos com ele?

– Nada, deixem que do garoto cuido eu.

– Sim senhor.

Seu pai literalmente jogou o Guilhermo pelo ombro como se carregasse um saco de batatas e retornou ao palácio, levando consigo também as frutas que ele fora comprar.

Sua tia Galawel, já que havia sido avisada pelos guardas o esperava no portão. Os dois se trancaram com o seu irmão numa sala por meia hora, mas não conseguiram descobrir nada. Eu e seus avós Ardriel e Lucca, curiosos com a demora dos dois, não resistimos e entramos na sala.

– E aí? Descobriram alguma coisa? – perguntou seu avô.

– Nada, pai, ele só chora e se recusa a falar nada – respondeu sua tia Gala.

– Também, o garoto está morrendo de medo – retrucou o seu avô. – Até parece que vocês dois não tem filhos e não sabem lidar com crianças. Deixa que eu e a sua mãe resolvemos.

Seus avós se aproximaram do seu irmão, seu avô com aquele sorriso bonachão dele e sua avó com aquele olhar maternal que só ela sabe fazer. Os dois se agacharam, de modo a ficarem quase da altura do Guilhermo e sorriram para ele.

– Qual o seu nome, meu bem? – disse a sua avó, enquanto acariciava os cabelos embolados do seu irmão.

– Ci-cicatriz – gaguejou ele.

– Cicatriz? – retrucou sua avó. – Não me parece um bom nome.

– Foi o patrão que me deu esse nome.

– E os seus pais, onde estão, garoto? – perguntou seu avô, num tom bem calmo.

– Não tenho pais não, tio, só o Patrão e a Tia, que é a esposa dele. Eles que me criam desde cedo. Me ensinaram como pegar presentes para eles. E quanto mais presentes mais comida eu ganho.

– Bem, meu anjo, enquanto estiveres aqui não vais precisar pegar nada para ganhar comida, só precisas pedir, viu? – falou a sua vó.

– Sério, tia?

– Sério. É só pedir, mas em troca não quero que pegues nada sem pedir. Temos um trato?

– Claro – sorriu o seu irmão.

– E porque você não nos conta mais sobre o Patrão, garoto? Onde ele mora, como ele é… – falou o seu avô.

Nesse momento o Guilhermo, que até então sorria, fechou a cara e se encolheu na cadeira.

– O que foi? – perguntou seu avô, preocupado. – Falei algo errado?

– Não, tio, o tio é legal, mas o patrão proibiu de contar qualquer coisa sobre ele. Ele até bate em quem fala qualquer coisa.

– Não se preocupe, garoto, o tio aqui não vai deixar ninguém lhe machucar, viu? E o tio é bem forte – respondeu seu avô enquanto mostrava o bíceps para o seu irmão.

Guilhermo olhou impressionado para o braço do seu avô, mas mesmo isso não o motivou a falar.

– Não precisa falar agora se não quiseres, meu bem – interveio a sua avó. – Mas que tal um banho bem gostoso e um bom lanche?

– O lanche eu aceito, tia, mas o banho, não dá para pular? – falou, sem graça, o seu irmão.

– Não, não dá – falou, rindo, a sua vó. – Mas garanto que a água vai estar bem morninha e vou usar um sabonete bem gostoso em ti.

– Banho quente? E é bom? O Patrão só deixa a gente tomar banho gelado e com um sabão bem duro.

– Tenho certeza de que vais adorar. Vamos? – disse sua avó, se levantando e oferecendo a mão ao seu irmão.

– Vamos – sorriu ele.

O seu pai, a pedido da sua vó, saiu para providenciar novas roupas para o Gui enquanto nós o levamos para o quarto da sua avó para dar um bom banho nele.

 Seu pai, depois de ter conseguido algumas roupas, retornou ao quarto dos seus avós. Lá ele encontrou apenas a sua avó e eu a darmos banho no seu irmão.

– Ué, cadê a Gala e o meu pai? – perguntou ele.

– Teu pai e tua irmã foram resolver um pequeno probleminha.

– Probleminha?

– Bem, amor, depois que o Guilhermo contou que o tal “patrão” foi quem fez as marcas no rosto dele e nas costas, eles decidiram que era hora deles terem uma conversa com esse bandido – respondi.

– Guilhermo? – perguntou seu pai.

– É, gostou? Já que vamos adotá-lo, decidi que Guilhermo era um bom nome para ele.

– Vamos adotá-lo? – retrucou o seu pai.

– Vamos, eu vivia dizendo que o Matheo precisava de alguém da idade dele para ser companheiro dele, então…

– Ok, ok, amor, eu te conheço o suficientemente bem para saber que isso já está decidido…

Eu sorri e continuei a lavar o cabelo do seu irmão, desfazendo os nós que havia neste.

– Aliás, filho, acho que é melhor ires atrás daqueles dois. Eles estavam um tanto quanto irritados quando saíram daqui e eu estou com medo deles fazerem besteira.

– Eu já estou indo, mãe. E é bom eu ir logo pois se eu conheço bem aqueles dois, é bem capaz deles matarem o tal “patrão” de porrada se não tiver ninguém para contê-los.

Após dizer isso, seu pai saiu correndo atrás da sua tia e do seu avô. E desde aquele dia o seu irmão Guilhermo tem vivido conosco. E como ele não sabia qual era o seu dia de nascimento e o tal bandido também não sabia, nós decidimos que aquele dia também passaria a ser a data de nascimento do seu irmão.”

– E pronto, filha, foi assim que nós conhecemos o seu irmão e que ele passou a fazer parte da nossa família.

– Só tem uma coisa estranha na história, mãe…

– Qual?

– O vovô e a tia Gala bravos. Pois geralmente quem fica brava é a vó Dri.

– Verdade, filha, verdade, mas é que seu avô e a sua tia, quando veem algo muito errado, como as marcas no corpo do seu irmão, acabam por perder o controle.

– E eles mataram o tal bandido de porrada, como o papai disse na história que eles fariam?

– Não, claro que não, Megan. Tá, sua tia quebrou o braço dele e o seu avô mandou três bandidos que trabalhavam para ele para o hospital, mas não mataram ninguém.

– Mãe, posso perguntar mais uma coisa?

– Claro.

– Como o Matheo reagiu com a chegada do Gui?

– Ora, o seu irmão ficou morrendo de ciúmes e ficou implicando com ele direto.

– Como faz até hoje, né?

– Sim, como faz até hoje. E o legal é que por mais que um implique com o outro, ainda assim são superamigos.

– Embora eles não concordem em nada, né mãe?

– Na verdade tem uma coisa na qual eles concordam sempre, filha.

– Qual?

– Na vontade de proteger você, a irmãzinha caçula deles…

– Ah, mãe…. – reagiu a menina sem graça.

Megan riu diante da timidez da filha e fez um cafuné no cabelo desta.

Fim

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