Sombras do Passado

(Trecho 4)

4

Mari acordou assustada numa cela úmida, com a sua capa amontoada debaixo da cabeça, servindo de travesseiro. A primeira coisa que fez ao acordar foi procurar seus companheiros. Encontrou a tia sentada num canto da cela, cuidando de Rach, que parecia muito ferido.

– Mari, que bom que você acordou – disse Vali, se esforçando para sorrir.

– O que houve com ele, tia?

– Bem, se o raio enviado pelo rei goblin foi suficiente para nos derrubar, imagine para alguém pequeno como o Rach.

– Não se preocupe, senhora, já estive pior – disse o pequenino antes de começar a tossir.

Antes que mais alguém pudesse falar algo, dois goblins, com um ar malicioso nos seus olhares, rindo, chegaram até a porta da cela. Um deles tirou uma chave do bolso e começou a abrir esta.

– Tem certeza de que podemos fazer isso? – perguntou o outro.

– Não é você que disse que está cansado de estuprar anãs e queria provar a doçura de uma elfa? E não se engane, essas elfas são nobres, pelo jeito delas se vestirem e agirem. Quem sabe a gente não tenha a chance de foder alguém da realeza? Vamos fazer o combinado: você vigia elas enquanto eu faço o serviço, depois a gente troca.

Os dois goblins entraram na cela. O que perguntara se era seguro fazer o que iam fazer pegou Mariana pelos cabelos, mantendo-a de joelhos no chão e encostou uma faça no pescoço dela. O outro, se voltando para Vali, disse:

– Se não quer que a sua amiga perca a cabeça, se afaste do inseto e pode arriando as calças.

Vali por um breve instante ficou a pensar no que fazer. Se estivesse sozinha, poderia usar seus truques mágicos para derrubar os dois. Agora, com Mari de refém, ela conseguiria derruba-los sem que antes machucassem Mari? Antes que ela tomasse qualquer decisão, algo que ela não esperava ocorreu. Rach abriu as asas com dificuldade e, alçando voo, se jogou contra o rosto do goblin que segurava Mari como refém.

Nem o bandido esperava por isso, tanto que, instintivamente, ele largou a moça, agarrou o inseto e o jogou longe. Sem titubear e se lembrando das aulas de defesas ministradas por seu pai, Mari, que ainda estava ajoelhada no chão, desferiu uma cotovelada no saco do goblin. Quando este se curvou de dor, a elfa rapidamente se levantou e enfiou uma sonora joelhada no meio do rosto imundo deste, nocauteando-o.

Aproveitando a confusão gerada pelos outros dois, Vali gerou uma bola de energia e lançou contra a virilha do outro goblin. Este, ao ser acertado, caiu no chão urrando de dor.

– Da próxima vez que tentares estuprar alguém, tenho certeza de que se lembrará de mim – disse ela e, após pronunciar tais palavras, desferiu um chute no meio das pernas do vilão com tal força que algo estalou.

A elfa já olhava para a sobrinha vislumbrando uma oportunidade de fugir quando uma sombra surgiu da entrada da cela e o rei goblin, acompanhado de vários soldados, entrou nesta.

– Dois idiotas – disse ele, olhando para os soldados feridos -, vocês realmente acharam que iam estupra-las com a mesma facilidade com que estupram uma anã? Soldados, tirem esses imbecis daqui e reforcem a segurança. Quanto a vocês, senhoritas, não se preocupem, ninguém as oportunará mais.

O rei saiu seguido de seu pajem. Quando já se encontravam distantes da cela, este perguntou a seu mestre:

– Meu rei, porque não deixar os homens se divertirem com elas? Tenho certeza que pagarão o valor do resgate com elas inteiras ou não….

– É por isso que eu sou o rei e você o pajem. Pela qualidade das armas e das roupas, logo se vê que as duas são nobres. Além disso a mais nova trazia uma rosa incrustada na fivela do cinto.

– E?

– A rosa, idiota, é o símbolo da segunda casa mais poderosa entre os elfos, a casa do campeão de Arlon, o maldito que matou o meu mestre Darklit.

– Mais um motivo para deixar os homens se banquetearem delas.

– Imbecil, diferente de nós, elfos e homens prezam pela família e pela honra desta. Eles não pensarão duas vezes em pagar o resgate. Agora, se algum de nós violentar alguma das duas, não duvide, eles derrubarão tudo isso aqui sobre nossas cabeças. E nós ainda não estamos prontos para enfrentar tal fúria. Em breve, quando eu tiver terminado de dominar todos os mistérios do livro, estaremos, mas ainda não estamos. Então, o próximo que tocar em um fio de cabelo delas será morto por mim, pessoalmente, fui claro?

– Sim, mestre.

Na cela, Vali aparava um ainda mais ferido Rach enquanto Mari, com os olhos cheios d’água, brigava com ele:

– Idiota, por que você fez isso? Já não estava ferido o suficiente?

– Alguém tinha que proteger a senhorita. E eu ainda pude roubar isso – disse o pequenino enquanto mostrava a chave que havia roubado. – Eu estou ferido, mas posso distrai-los para vocês fugirem.

– Eu não entendo. Desde que te conheci mal falei contigo, te chamei de barata e no entanto você já se sacrificou uma vez por mim e está disposto a fazê-lo de novo. Por que?

– Por causa do seu pai.

– Hã?

– Eu era um pouco mais do que uma pupa quando o meu pai me levou com ele num encontro diplomático em Tilania, a capital dos anões cavaleiros de grifo. Naquele mesmo dia o seu pai chegou para um encontro com o rei, acompanhado de parte da Guarda Real de Arlon. Quando vi aqueles imponentes guerreiros com seus trajes alvirrubros, liderados pelo seu pai na sua armadura brilhante, desejei ser um deles, um cavaleiro como eles. E um cavaleiro está sempre disposto a se sacrificar para proteger uma dama.

– Você está errado. Meu pai não é um cavaleiro.

– Não?

– Não, meu pai é um herói e se você quer ser como ele, saiba que um herói sempre dá um jeito de salvar não só os outros, mas também a si próprio, viu?

– Eu vou me esforçar então – sorriu Rach.

– Você tem é que descansar primeiro, isso sim – retrucou Vali e, com um gesto, usando um truque que havia aprendido à alguns anos, a elfa fez o pequeno baratis dormir.

– Ele desmaiou? – perguntou Mari.

– Não, eu apenas o fiz dormir, se calme Mari.

Vali pegou a sua capa, que jazia caída num canto, a enrolou a pôs sobre a cabeça de Rach.

– Tia, o que faremos agora? Temos que fugir, mas, ao mesmo tempo, não podemos deixar o livro com eles, podemos?

– Não, não podemos. Só que o Rach não tem condições de lutar no estado que está e eu não posso usar meus poderes para cura-lo, tenho que conservar energia para fugirmos daqui.

– Eu posso tentar. A tia Lili me ensinou alguns truques de como curar ferimentos mais simples. Talvez não seja o ideal, mas já deve ajudar, não?

– Claro que ajuda.

– Alias, tia, eu tive uma ideia agora…

– Qual?

– Você não poderia usar nos feiosos o mesmo truque que usou no Rach para ele dormir?

– É uma boa ideia. Mas antes você precisa se concentrar em ajudar o nosso pequeno guia.

Mari respirou fundo, se colocou de joelhos do lado de onde repousava o pequenino e colocou suas duas mãos espalmadas acima do corpo deste. A jovem começou a se lembrar do que lhe ensinara a sua tia Liliana, de que a magia de cura é a mais difícil, mas a mais pura das magias, movida pelo desejo de proporcionar bem-estar ao seu alvo, necessitando de um coração sereno e confiante. Se fosse a alguns dias atrás, ou mesmo à algumas horas, Mari talvez não fosse capaz de executar tal feitiço em um ser como Rach mas as atitudes do pequenino haviam impressionado ela e o asco que ela sentira por ele num primeiro momento havia dado lugar à um sentimento de respeito e todo aquele discurso manjado dos pais dela de que nunca devia se julgar alguém pela aparência finalmente passara a fazer sentido.

Uma tênue luz branca surgiu a partir das mãos da jovem e logo envolveu por completo o pequenino. Depois de algum tempo esta se extinguira, Mari passara a respirar como se estivesse cansada, mas Rach agora respirava de maneira suave e não mais com esforço.  

– Será que funcionou?

– Você fez o que podia, Mari – sorriu Vali. – Agora deixe-o descansar e sugiro que você descanse também.

– Ta bom, tia.

Mari se ajeitou como dava, sentando encostada na fria parede da cela e acabou por cochilar.

Quando acordou, viu Rach conversando calmamente com Vali, fazendo planos e isso deixou o seu coração mais leve. O pequenino, ao vê-la desperta, foi em sua direção, fez uma mesura e com um sorriso disse:

– Senhorita, sou muito grato pelo que fizestes por mim e saiba que estarei eternamente em dívida convosco.

– Bobagem, só quis ajudar um companheiro ferido, nada mais do que minha obrigação. Agora eu imagino que você e a minha tia já tenham pensado num plano.

– Sim, só não sei se é um bom plano…

– Nós vamos usar sua ideia, Mari, de tentar botar todo mundo para dormir. E quem não dormir, bem, a gente passa por cima.

– E o rei Goblin, tia?

– Ele me pegou de surpresa uma vez, não vai conseguir fazê-lo de novo – respondeu Vali enquanto estalava os dedos da mão com um sorriso maroto no rosto.

Os três se prepararam como davam, prenderam bem suas capas e, silenciosamente, se aproximaram da porta. De maneira inaudível, Vali colocou a chave que Rach roubara na fechadura e destrancou a porta. Depois disso abriu uma fresta nessa, tentando fazer ao máximo que suas dobradiças não emitissem nenhum ruído. Tendo sucesso nisso, ela colocou o rosto para fora e espiou. Notou que havia dois guardas de plantão que não haviam notado nada.

A elfa pegou fôlego, se concentrou e lançou neles, de maneira silenciosa o feitiço de sono. Os dois soldados de maneira quase instantânea desabaram no chão. Os três saíram da cela e trataram de pegar suas armas e equipamentos que jaziam numa mesa em frente a esta.

Tendo se armado novamente e certificado que estava tudo bem preso, para fazer o menor barulho possível, eles começaram a se esgueirar pelos corredores da base dos goblins. Vali ia na frente, sendo que possível derrubando os adversários com o seu feitiço de sono, mas, quando não era possível, acabavam por ter que nocauteá-los por meio da força física.

De maneira mais fácil do que esperavam, eles chegaram à sala do trono e lá encontraram o livro em cima da mesa e o pajem do rei dormindo no trono real. Rach se esgueirou até ele é, encostando a sua fina espada no pescoço dele, sussurrou:

– Sei que minha espada mais parece um palito de dentes, mas saiba que ela é afiada o suficiente para lhe matar caso você tente algo.

Acordado no susto e sentindo o fio no seu pescoço, o goblin se encolheu todo e nada disse. Aproveitando que o goblin não tentou chamar reforços, Mari pegou o livro enquanto Vali, com um golpe rápido, nocauteou o adversário.

Eles já estavam pegando o corredor principal que os levaria à saída quando um barulho de palmas se ouviu. Se voltaram para o local de onde vinha o som e viram o rei goblin a aplaudir, ao lado dele havia uma criatura ainda maior e mais feia do que ele e alguns soldados.

– Meus parabéns, vocês quase conseguiram. Agora queiram devolver o meu livro e eu prometo que o meu sobrinho não vai machucar muito vocês – disse o rei, apontando para o grandalhão ao seu lado.

– Seu sobrinho? É, a feiura é de família – provocou Mari.

– Vá brincando, menina. Meu sobrinho é filho da minha irmã com o sobrinho do líder do maior clã de orcs das cordilheiras centrais. Não foi fácil fazê-los se encontrarem e se acasalarem mas valeu a pena. Com a minha ajuda ele será o próximo rei negro, o líder que unificara goblins e orcs e que vai destruir os reinos élficos do centro do continente.

– Ahã, é isso aí, tio – falou o monstro.

– É, grande e burro, vai ser um belo rei – debochou Rach.

– Silencio, inseto!

Após ter gritado isso, o rei goblin invocou o mesmo feitiço que os nocauteara antes, mas, desta vez, para sua surpresa, os raios foram rebatidos no meio do ar, acertando os seus soldados.

– O que houve? – disse ele confuso.

– Você realmente acha que eu cairia no mesmo truque duas vezes? – sorriu Vali.

– Não seja por isso, tenho certeza de que meus soldados cuidarão de vocês.

– Ué, você não é o poderoso rei goblin? Seu sobrinho não é o futuro rei negro? E vocês precisam de ajuda para cuidar de duas mulheres e um inseto?

– Insolente! Sobrinho, recupere o livro. Desta elfa cuido eu.

O rei partiu para cima de Vali enquanto o seu sobrinho foi atrás de Mari e Rach. O estúpido guerreiro trazia um machado consigo e o usou para atacar os dois. Com esforço, usando suas espadas, Mari e Rach, que se encontrava planando no ar, apararam o golpe do adversário, mas a força acabou por desequilibra-los. Rach ficou na frente de Mari para protege-la e um novo golpe do adversário acabou por decepar sua mão inferior esquerda.

Aproveitando a abertura e, tomada de raiva, Mari se lembrou de todas as aulas de esgrima que tivera com seu pai, com sua irmã mais velha, Galawel e com o seu primo Karlon e, com um golpe preciso no pulso, acabou por decepar a mão direita do monstro.

– Como se diz de onde eu vim, olho por olho, dente por dente e no caso, mão por mão – falou Mari, após aplicar tal golpe.

Vendo o que ocorria, Vali abriu um sorriso e jogou uma esfera de luz na cara do rei, cegando o temporariamente. Sem dar chance aos inimigos, ela correu até onde estavam Mari e Rach. A elfa jogou o ferido baratis sob o ombro e virou para a sobrinha:

– Vamos, a cavalaria chegou.

Mari no primeiro momento não entendeu o que a tia quis dizer, mas não havia tempo para discutir. Ela saiu correndo atrás dela, sendo perseguidas por um pelotão de goblins raivosos.

Subiam caverna acima e, assim que fizeram uma curva, entraram num salão mais amplo e finalmente a jovem compreendeu as palavras de sua tia. No meio do salão havia um portal de energia, através do qual podia se ver as campinas verdejantes que predominavam no reino de Arlon e, parada do lado do portal havia uma guerreira trajando uma armadura prateada clara, quase branca, com detalhes vermelhos e com uma rosa vermelha desenhada no meio do peito.

Embora raramente a tivesse vista trajando aquela armadura, Mari reconheceu logo sua mãe, Ardriel, usando a sua armadura de guerra, conhecida como “Dama Vermelha” e sorriu.

Enquanto atravessava o portal, Mari ainda olhou para trás e viu a sua mãe erguer a sua espada, “Flamejante” e criar uma barreira de fogo entre os goblins e o portal, impedindo estes de o alcançar.

A jovem se jogou cansada na grama, respirando pesada, só para ser logo erguida deste por seu pai, Lucca, que lhe deu um forte abraço e um sorriso.

– Estou orgulhoso de você, filha, se saiu muito bem na sua primeira missão.

– É, tirando que eu e a tia quase fomos estupradas por dois goblins babões, tudo bem.

– Isso é verdade, maninha? – perguntou ele, sério, para Vali

– Ahã.

Lucca nada disse. Apenas deu um assobio forte. Logo um imenso grifo prateado apareceu do seu lado. Seguido pelo animal, Lucca foi até o portal. Ajudou sua esposa a sair deste e, com um gesto, o fez ficar bem menor, insuficiente par alguém passar. Feito isso, fez um sinal para o animal que estava ao seu lado. A poderosa fera enfiou o bico no buraco e soltou um grito sônico. Depois disso, o cavaleiro finalmente fechou o portal.

– Pai, você tem noção que o grito do Flecha pode ter derrubado o teto da caverna? – perguntou Mari.

– Ora, minha filha, a ideia era essa – sorriu ele.

– Alias, vocês podiam ter aberto o tal portal antes, né? Ou ter nos teleportado para fora dali.

– Desculpe, filha, mas alguma coisa nos impedia de rastrear vocês. Ou mesmo de nos teleportar para lá. O mais próximo que conseguimos foi abrir esse portal onde abrimos e só conseguimos porque sua tia Vali conseguiu nos contactar e informar sua localização aproximada.

– Provavelmente a magia do rei goblin estava interferindo na comunicação, maninho. Mas o que importa é que conseguimos o livro e eu estou precisando de um bom banho.

– Por falar nele, pai, o que faremos com esse livro?

– Deixa que dele eu cuido, filha – disse Ardriel, já sem o capacete. – Paulus se ofereceu para guarda-lo, mas ele é perigoso demais para ficar nas mãos de qualquer pessoa.

A jovem entregou o livro para a mãe. Ardriel olhou o livro, folheou ele rapidamente e, se virando para o marido, falou:

– É, com certeza esse é um dos tomos malditos de Dak.

– Então, amor, faça as honras – disse Lucca.

A princesa fez surgir na mão que segurava o livro uma chama branca, brilhante, que engoliu o livro e, quando esta se apagou, restavam apenas cinzas na sua mão.

– Bem, livro destruído, goblin punidos, acho que podemos ir embora, né? – falou Lucca antes de teleportar todos para o castelo real de Arlon.

Uma semana depois, seguindo um pedido de sua filha e usando de suas prerrogativas de princesa herdeira, Ardriel nomeou Rach cavaleiro da coroa de Arlon e também de Erdan. E foi assim que “Rach das Três Mãos”, como ele passou a ser conhecido, se tornou uma lenda entre os baratis, sendo o primeiro deles a se tornar um aventureiro de respeito e membro da corte de um dos “povos grandes”, que é como eles chamavam anões, elfos, homens e alados.

Fim

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