Sombras do Passado

(Trecho 3)

3-

Dois dias depois Lucca esperava a filha terminar de se preparar para repassar as últimas instruções para esta quando ela entrou no quarto onde ele estava, ainda sem ter terminado de se arrumar.

– Pai, qual é a do Paulus? – perguntou ela, logo ao entrar.

– Como assim Mariana? Não entendi.

– É que eu quero conhecer melhor a pessoa que eu vou ajudar. Não que eu vá desistir de ajudar ele diante do que você me contar, sou grata por ele ter me dado uma chance como modelo e só por isso já estou disposta a ajudá-lo embora aventuras não sejam bem a minha “praia”.

– Ok, começo a entender o motivo da sua pergunta, mas sigo sem entender a sua pergunta em si.

– Bem, como vou explicar… Eu sempre achei que ele era gay ou mesmo transexual se consideramos que lá em Noritvy ele era ela, por assim dizer, mas ontem ele estava acompanhado de uma esposa, um filho e prestes a ser pai de novo.

– Não sei porque isso lhe incomoda, filha, a vida sexual do Paulus só diz respeito a ele mesmo…

– Não me incomoda, longe disso, eu tenho amigos gays, lembra? Só fiquei curiosa mesmo.

– Entendi. Olha, quando eu conheci o Paulus, há muito tempo, quando a gente chegou brevemente a ser amigo…

– Vocês foram amigos??

– Sim, antes dele conhecer o Marco e a Raimunda.

– Quando você fala em Marco e Raimunda, pai, você está falando do Marco que é o falecido Guerra, que supostamente era o seu rival e a Raimunda que é a mulher do Paulus e também era a Fome, certo?

– Exato, filhota, e suposto não, o Marco foi criado para ser o meu rival, o problema dele é que ele sempre pensou com os punhos e não com o cérebro. E, ainda assim, foram necessárias quatro pessoas para derrotá-lo na primeira vez.

– É, mas na segunda o tio Sieg derrotou ele sozinho.

– Teu tio é tão bom guerreiro quanto eu, se não for melhor e é bem mais experiente. Mas deixemos isso de lado.

– Certo.

– Como eu dizia, desde que eu conheci o Paulus, antes dele “passar para o lado” do Marco, ele sempre se disse gay, nunca transexual.

– Mas em Noritvy ele era mulher!

– Sim e isso tem uma explicação, filha: ele era apaixonado pelo Marco, mas esse era hétero. Então, na cabeça do Paulus, imagino eu, pelo que eu descobri, deve ter passado a seguinte ideia: vou virar mulher, conquista-lo e depois convencê-lo a me assumir na Terra também. Mas não deu certo. Segundo as minhas fontes o Marco se envolveu com mulheres de Noritvy, dizem que chegou a engravidar uma moça lá, mas nunca deixou de ver o Paulus como um amigo, usando às vezes até pronomes masculinos na hora de falar com ele.

– Pode soar estranho, pai, mas eu to com pena dele. Fez tudo por um amor e não conseguiu nada.

– Estranho porque? Só porque ele é ou foi um “cara mal”?

– Exato.

– Mariana, não há nada de errado em sentir pena ou dó de alguém mesmo que esse alguém seja uma pessoa ruim. Isso justamente é uma das coisas que separam as pessoas boas das ruins. Uma pessoa boa é capaz de sentir compaixão por todos aqueles à sua volta, mereçam eles ou não.

– Exato, minha filha, seu pai tem razão – falou Ardriel que entrara no quarto sem ser notada. – E não é algo fácil acredite. Mas seu pai sempre fez isso parecer fácil e foi uma das características dele que fizeram eu me apaixonar por ele: essa capacidade de estender a mão ao próximo, seja ele quem for.

– Tá, ok, agora só uma última pergunta: vocês acreditam nessa história dele ter “trocado de lado” e agora estar casado?

– Não acho que ele tenha “trocado de lado”, minha filha, eu já conheci várias pessoas que alegavam se apaixonar pelo “indivíduo” e não pelo sexo, talvez o Paulus seja uma dessas pessoas, talvez ele tenha se apaixonado pela pessoa da Raimunda e deixado a questão do sexo dela de lado.

– E eu concordo com a tua mãe, Mari, conheci várias pessoas assim e posso te garantir que ele não mentiu quando disse que o filho foi feito usando o “método natural”.

– Até nisso você usou o seu dom de detectar mentiras, pai?

– Minha filha, quando se trata de Paulus e Rai eu estou sempre usando o meu dom. Agora para de enrolar e vai terminar de se arrumar.

– Ok!

Mariana foi terminar de se arrumar e quando retornou usava um traje nada usual para ela: uma armadura de couro e placas metálicas que protegia o tronco, com uma saia de tiras de couro que protegia as pernas e um par de botas que ia até o joelho. Usava também duas munhequeiras de couro reforçado e trazia uma espada curta presa na cintura.

– Afivelou bem a armadura?

– Sim, pai.

– Pegou a mochila com os suprimentos?

– Sim, inclusive o inútil kit de costura.

– Precisa de mais alguma instrução?

– Não, pai…

– Está bem então, filha.

– Ah, pai…

– Sim?

– Tem certeza de que não posso levar a Lady comigo?

– Filha, por mais sua grifa tenha o tamanho de um rottwailler, ela ainda é um filhote e grifos e cavernas não costumam se dar bem.

– Tá bom….

– Agora vai que sua tia está lhe esperando.

– Tia?

Com um gesto, Lucca teleportou a filha sem responder à pergunta desta. A jovem, quase instantaneamente, reapareceu nas Montanhas Negras, mais precisamente dentro do Reino subterrâneo dos anões, num canto pouco povoado e pouco iluminado deste. Bastou os seus olhos se acostumarem com o escuro para reconhecer quem lá a esperava: era sua tia Vali, irmã de consideração do seu pai e sua madrinha. Vali era uma elfa de altura média, cabelos negros lisos e olhos dourados. Vestia uma armadura similar à de Mariana e trazia um grande arco com uma aljava cheia de flechas nas costas, além de uma capa cinza presa nos ombros.

– Dinda! – disse Mariana com um grande sorriso enquanto abraçava Vali. – Então é a senhora que vai me acompanhar hoje?

– Senhora não, Mari, você, por favor – sorriu a elfa. – E eu me ofereci para vir hoje. Estava com saudades da minha linda afilhada e, além disso, temos um perfil parecido no estilo de luta.

– Temos?

– Sim, assim como você eu combino magia com técnicas de luta, e, principalmente, ataques à distância.

– Definitivamente, tia, não gosto de sujar as minhas mãos, nem de ficar com ela dura e cheia de calos.

Vali nada respondeu, apenas riu diante do comentário da sobrinha.

– Alias, tia, cadê o anão que vai guiar a gente?

– Anão? Nenhum anão se atreve a ir aonde a gente vai, Mari.

– Não? E como a gente vai se guiar por lá então? Você conhece o lugar?

– Não. No local onde nós vamos, no passado, vivia um perigoso demônio que os seus pais ajudaram a matar e, por isso, até hoje, os anões daqui tem medo do lugar, embora eles digam que não tem medo, apenas receio. Talvez por isso Darklit tenha mandado esconder o livro lá, pois sabia que ninguém entraria neste lugar. E, não, eu não conheço o lugar. Mas o seu pai ficou de mandar um guia que já explorou a região e que enxerga melhor no escuro do que um anão.

– Desde que cheire melhor que esses anões daqui das Montanhas Negras, por mim tanto faz quem ele mande.

– Não se preocupe, alteza, eu garanto que meu cheiro não desagradará vosso sensível nariz – disse uma voz fina.

Quando Vali e Mariana olharam para o lugar de onde vinha a voz, levaram um susto. Parado diante delas estava uma criatura de uns cinquenta centímetros de altura e quatro braços que lembrava uma barata usando uma calça bege, uma camisa branca, um colete verde por cima desta e trazendo preso nos ombros, uma surrada capa cinza com um capuz. E deste saiam um par de finas antenas.

– Uma barata falante! – gritou Mariana, visivelmente com nojo.

– Barata não, alteza, Baratis. Por favor não me confundir com meus primos irracionais.

– Você é o guia que o meu irmão mandou? – perguntou Vali, com um ar casual, embora, na verdade, também estivesse com nojo.

– Exatamente, senhora. Sou Rach e estou inteiramente ao seu dispor. Diferente dos anões daqui eu já explorei essas cavernas e nós, baratis, enxergamos melhor no escuro do que eles, embora eles nunca admitam isso. Se a senhoras já estiverem prontas, podemos partir.

– Já estamos sim – respondeu Vali.

– Ótimo – sorriu o pequenino.

Rach atravessou o portão que marcava o começo do caminho deles, seguido por Vali e Mari, que fazia questão de manter uma certa distância do seu guia.

O grupo seguiu por um corredor úmido e pouco iluminado que parecia seguir para o interior da Terra pois cada vez descia mais. Era relativamente largo, tendo algo em torno de uns cinco metros de largura e uns quatro de altura e era toscamente escavado na rocha. Depois de uma descida que levou aproximadamente uma hora, chegaram num grande salão, amplo, mais largo que um campo de futebol, com longas colunas e grandes estalactites no teto.

O guia tirou um pequeno papel do bolso do colete, o desdobrou e ficou analisando ele por alguns minutos.

– Bem, senhoras, segundo este mapa, que me foi dado por Lord Lukhz, teremos que pegar o túnel da esquerda, o que, eu, sinceramente, adoraria evitar.

– Por que? – perguntou Mari.

– O túnel da esquerda é povoado por goblins, senhorita.

– Goblins?

– Sim, imagine orcs menores, mais fracos, mas mais ágeis, mais cruéis e capazes de usar magia, isso são goblins – explicou Rach.

– Seu pai, Mari, costuma dizer que meia dúzia de goblins não oferecem risco nenhum. Mas não creio que só tenha meia dúzia por aí – comentou Vali.

– Não mesmo, senhora, deve haver uma centena ou mais nestes túneis.

– Ao mesmo tempo não podemos retornar sem o tomo – falou Vali – então só nos resta seguir em frente.

Eles caminharam até a entrada do túnel. No topo desta havia um símbolo estranho desenhado, junto de letras mais estranhas ainda.

– Língua goblinoide. Eles realmente estão por aí – suspirou Rach.

– E o que sugeres, Rach? Existe alguma rota paralela? – perguntou Vali.

– Sugiro que fiquem aqui, senhoras. Irei fazer um reconhecimento. Para nossa sorte, o meu povo é capaz de se encolher até assumir a aparência de uma barata e, bem, baratas são comum por aqui – explicou o guia e, com um sorriso, emendou – Peço por favor que não matem nenhuma enquanto eu estiver fora.

Antes que qualquer uma das duas falasse algo, Rach sumiu dentro da própria roupa e, de dentro desta, saiu voando uma pequena barata marrom. Esta entrou no túnel e sumiu nas trevas deste.

Não tendo outra escolha, as duas elfas sentaram no chão, junto das roupas do pequeno guia, conversando.

– Sabe, Mari, eu realmente fiquei feliz ao saber que você se ofereceu para vir aqui, hoje.

– É, tia, eu nunca me liguei no lado guerreiro da família, por assim dizer e continuo sem me ligar, mas, ao mesmo tempo, sei que, sendo filha de quem sou, é sempre bom saber me virar um pouco. E eu sou grata ao Paulus por estar me ajudando na carreira de modelo. Sei que ele, como diz o meu pai, “não é flor que se cheire” e que fez muita coisa ruim por aqui, mas ainda assim me sinto em dívida com ele. Pode parecer estranho, mas é assim que me sinto.

– Estranho por que, Mari? Ele lhe ajudou e você quer ajudar de volta. Isso se chama gratidão, não há nada de errado em ser grata a alguém que lhe fez o bem.

As duas continuaram a conversar, sobre coisas sérias e também sobre banalidades até que o guia delas retornou.

– Senhoras, parece que a sorte está ao nosso lado. Boa parte dos goblins parece ter saído para caçar e o livro está desprotegido, numa mesa ao lado do trono do rei deles.

– Ótimo, vamos logo pega-lo – sorriu Vali.

Guiadas pelo baratis, as duas guerreiras desceram por uma série de túneis, fazendo alguns desvios à esquerda e à direita. Logo chegaram à uma grande câmara, que fedia à carniça. No fundo desta havia um trono feito de ossos e, ao lado deste, havia uma mesa, igualmente feita de ossos e, sobre está, um livro velho com uma capa de couro negro.

Segurando a ânsia de vomito provocada pelo cheiro, o grupo caminhou sorrateiramente até a mesa e se apoderou do livro. Rach deu suspiro de alívio ao ver que nenhuma armadilha se acionou quando ele tirou o livro da mesa e já liderava o grupo para a saída quando um pelotão de goblins brotou de um túnel lateral. À frente deste havia um goblin quase tão grande quanto um orc. Ele trazia sobre a cabeça uma coroa feita com o crânio de um anão, trajava um saiote adornado de ossos e segurava um longo cajado também feito de ossos.

– Vocês achavam que entrariam nos domínios do Rei Xamã das Montanhas Negras sem seres notados? – grunhiu o monstro. – Agora me passem o meu tesouro, o meu livro.

– Só por cima do meu cadáver – retrucou Rach.

– Isso pode ser providenciado, barata.

O rei ergueu o cajado em direção ao teto da caverna e três raios de energia roxa surgiram deste, cada um acertando um dos seus inimigos e levando os três à nocaute.

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