Sombras do Passado

(Trecho 1)

1-

Andando pela sala de casa, em círculos, Lucca estava visivelmente incomodado.

– Amor, você quer se acalmar um pouco? – ponderou Ardriel. – Nós dois concordamos em permitir que a Mariana trabalhasse como modelo, desde que ela andasse na linha. E ela tem andado. A nossa filha tem quinze anos, é uma moça linda, tem mais é que aproveitar a beleza dela.

– Sim, concordamos, mas ela tinha que desfilar logo pela “By P”? – retrucou Lucca.

– E o que tem de errado com a “By P”, pai? – perguntou Mariana, que havia entrado na sala sem ser notada.

E era difícil Mariana não ser notada, afinal, naquele momento, ela era uma moça alta, com longas pernas, pele bronzeada, cabelo castanho escuro, ondulado, cortado na altura dos ombros, com algumas mechas douradas na frente. Quem a visse, não acharia que era uma uma menina de quinze anos, mas uma mulher de vinte, vinte e um anos.

– Fora ela ser controlada por Paulus Veerbochen? – disse Lucca.

– E?

– E você não está lembrada, filha, de quem Paulus foi no passado? A amazona Morte…

– E dai que ele foi um super vilão ou uma super vilã, sei lá, no passado, pai? Ele agora é um estilista famoso, super elogiado na mídia por apoiar vários projetos de caridade e ele me escolheu pessoalmente. E ele sabe que sou sua filha, pai e deixou as rivalidades de lado. Por que o senhor não tenta fazer o mesmo?

– Mari esta certa, amor. Além disso, como a Mari é menor de idade, nós ganhamos passes para os bastidores. Assim, poderás ficar de olho na sua filha o tempo que quiser.

– Tá bom, ta bom, vocês me convenceram.

– Alias, pai, sei que a pergunta vai soar estranha, pois nunca me interesso pelo passado heróico da família mas que fim levou os outros cavaleiros do apocalipse que o senhor enfrentou?

– É estranho mesmo, filha, mas ao mesmo tempo gosto de vê-la se interessando pelo meu passado, que não deixa de ser seu tambem. Tales, o primeiro cavaleiro Peste voltou para a Terra, teve a memória apagada, se livrou da dependência química e hoje é o diretor pedagógico da escola onde você estuda. O segundo eu não sei quem era e não sei o que foi feito dele. Paulus, a Morte, bem, é estilista. Rai, que era a Fome, é secretaria e braço direito do Paulus, inclusive, oficialmente, ele é o pai do filho dela, digo oficialmente porque, sabe como é, ele nunca gostou da fruta.

– Sei lá, pai, como costuma dizer o vovô, numa noite de tempestade, tudo pode rolar. E o Marco, que era o Guerra, o que houve com ele?

– Ele morreu e por minha culpa.

– Por sua culpa, pai? Impossível.

– Marco entrou em depressão, filha, e se suicidou. E, em parte, por culpa minha sim. Quando nós os derrotamos de novo, quando salvamos a sua mãe, não tivemos a preocupação de apagar a memória deles. Pelo contrário, eu até fui contra isso, afirmando que isso era uma violação inaceitável da pessoa.

– Normal, afinal tinham apagado sua memória, pai e você sabia o quanto era ruim isso. Mas o que isso tem a ver com a depressão dele?

– Parece que o Marco, diferente da Rai e do Paulus, nunca se adaptou à uma vida normal, sem poderes, onde ele fosse apenas mais um. E isso o levou a entrar em depressão. E quando a Rai me procurou, eu virei as costas para ele.

– Normal, amor, afinal ela lhe procurou pedindo que você devolvesse os poderes dele, total ou parcialmente – interveio Ardriel. – Ela nunca nos contou que ele estava tão mal. E como a família dele tão pouco tocava no assunto, achando que tudo que ele falava era delírios, achando que ele tinha enlouquecido, não tinha como você adivinhar. Se a Rai pelo menos tivesse dito a verdade sobre a depressão dele, poderíamos pelo menos ter apagado as memórias dele, evitando assim a causa maior de sua depressão.

– Isso é verdade, a mãe tá certa, pai. O senhor não tem como saber de tudo sempre. Ninguém espera que o senhor saiba, afinal o senhor não é um deus. E, sinceramente, pelo que contam dele, ele não valia nada mesmo. Como diz a vovó, ficar falando disso é gastar vela boa com defunto ruim.

– Sua avó as vezes é meio dura, Mari e eu me sinto um pouco culpado sim afinal um dia nós fomos amigos, amigos de infância. Agora vai se arrumar antes que nos atrasemos para a sua estreia na passarela.

Mais tarde, já no local onde aconteceria o desfile, Mariana já se encontrava pronta para a sua estreia e conversava com um modelo bonito, alto, de cabelos escuros curtos nos bastidores da passarela quando o dono da grife, Paulus, se aproximou. Para ela era difícil crer que Paulus era um ano mais novo que o seu pai. Ele era magro, comprido, com um queixo anguloso e a sua cara maquiada e seu cabelo pintado tentavam inutilmente disfarçar marcas de envelhecimento.

– Olá Mariana. Pelo visto já conhecestes meu sobrinho Toni – sorriu o estilista.

– Eu estava mostrando tudo para ela, titio.

– Sei, lhe conheço bem, Toni. Agora recomendo que você recolha as suas garras pois a moça ao seu lado tem apenas quinze anos e o camarada de cara emburrada que está vindo ali é o pai dela.

De fato, da porta de acesso aos bastidores estava vindo Lucca, com cara de poucos amigos, e Ardriel, de braços dados. Ao ver Lucca, que era um quarentão de um metro e oitenta e cinco, largo e com braços que, apesar da roupa, se via claramente que eram trabalhados, Toni engoliu a seco.

– É, bem, tio, Mari, se me dão licença, tenho que me aprontar. Aliás, por curiosamente, Mari, quem é aquela gata junto do seu pai, sua irmã?

– Não, minha mãe.

– Mãe?! Nossa….

– Toni…. – falou Paulus num tom sério.

– Fui!

O rapaz saiu correndo. O estilista, por sua vez, arrumou a franja do cabelo, preparou o seu melhor sorriso, o mesmo que usava em suas entrevistas para TV e foi até a direção dos antigos rivais.

– Luquinha, Princesa, que bom que deixaram as rivalidades de lado e vieram à estreia da sua filha. Ela é um verdadeiro diamante bruto, mas com uma mãe tão bonita, não tinha como não sair linda. Aliás, princesa, precisa me passar suas dicas de beleza, viu?

– Gentileza, sua, Paulus, eu me cuido quando da tempo, afinal ser mãe, esposa e princesa é muita tarefa para uma pessoa só. E pode me chamar apenas de Ardriel.

– A senhora é que sabe. E Luquinha, se solte, curta o desfile, aproveite tudo. Saiba que de minha parte não há mais ressentimentos.

– Sério? – perguntou Lucca desconfiado.

– Sério. Eu entendo sua posição com relação ao Marco. E sei que se você soubesse da depressão dele teria dado um jeito de ajudar. É bem do seu feitio. Mas ele não quis que você soubesse. Escondeu até de mim isso.

– Isso eu nunca entendi – retrucou Lucca. – Sempre que achei que vocês fossem unha e carne.

– E éramos. Agora me deixe responder com uma pergunta: se você estivesse no lugar da Rai, você respeitaria o desejo dele ou contaria a verdade para ajudá-lo, a despeito do que ele pediu?

– Contaria a verdade, ué. E ele que brigasse comigo depois.

– Bem, Luquinha, eu penso o mesmo. Eu teria te contado a verdade. Mas a Rai sempre foi cegamente fiel a ele, fazer o que?

– Mas porque esconder a verdade do meu marido? – disse Ardriel. – Orgulho?

– Exatamente. Marco sempre viu o seu marido como o único à altura dele, o único que podia ser um rival decente. Sabe como é, ele sempre teve sonhos de grandeza. E ser ajudado pelo rival na sua hora de maior fragilidade, bem, para ele era melhor morrer.

– E por isso a Rai me culpa até hoje. E ela não está errada. Se eu tivesse dado um jeito de apagar as memórias de vocês, como fizemos da outra vez, nada disso teria ocorrido.

– Será, Luquinha? Você conseguiu quebrar o feitiço que colocaram em você. E eu entendo seus motivos. Você se sentiu estuprado mentalmente e não quis fazer ninguém passar por isso, algo bem nobre, bem ao seu estilo. Mas tem outro motivo, inconsciente do qual ninguém nunca se atinou.

– Qual? – espantou-se Lucca.

– Punição. Não há um dia do qual não me lembro das coisas terríveis que fizemos lá. E não sinto orgulho. Prefiro pensar que era influência do Darklit, que eu não sou tão mal assim. Acredite, não doou dinheiro aos pobres porque sou “bonzinho” mas como forma de aplacar minha consciência.

Antes que mais alguém falasse alguma coisa, um garoto de uns cinco ou seis anos saiu correndo do vestiário feminino rindo e com calcinhas nas mãos com um funcionário que gritava para “pegarem aquela peste” correndo atrás. Ao ver Paulus, o garoto correu para o colo dele.

– Meu filho, o que você aprontou agora?

– Ué, pai, você sempre disse que homens tem que ficar espiando as calcinhas das mulheres, então eu fui lá espiar.

– Espiar meu filho, não roubar – gargalhou Paulus.

Rai apareceu logo depois. Ela era dois anos mais nova que Lucca e um ano mais nova do que Paulus e, diferente deste, estava extremamente bem conservada. Sem sequer dirigir a palavra à Lucca ou Ardriel, ela pegou o filho no colo e foi embora.

– Desculpe a Raimunda. Eu deixei tudo para trás, ela não. Ela inclusive era contra a Mariana estar aqui – disse Paulus.

– E porque então você contratou nossa filha? – perguntou Ardriel.

– Porque, como eu já disse, ela é um diamante bruto e eu adoro diamantes.

– Paulus, desculpe, mas posso fazer uma pergunta?

– Claro, alteza.

– Deixe o alteza de lado, por favor. O garoto é seu filho mesmo?

– O Marquinho? Sim, o nome dele é Marco. Eu achei de mau agouro, mas a Rai insistiu no nome. E ele é meu filho sim, “sangue do meu sangue” como os bregas gostam de falar. E, diferente do pai, vai ser um macho que vai me encher de netos. Eu amo quem sou, mas devo reconhecer que ser hetero é mais fácil, não tem que lidar com preconceitos tolos.

– Qualquer tipo de preconceito é inaceitável, mas entendo o seu ponto de vista. Aliás, foi inseminação artificial, né? – comentou Lucca.

– Nã-na-ni-na-não, método 100% natural. Digamos que estou numa fase em que “eu gosto de meninos e de meninas também”, se é que me entendem. Se quiseres os detalhes….

– Me poupe dos detalhes sórdidos….. – disse Lucca.

O estilista começou a gargalhar.

– Luquinha, Luquinha, você me fez lembrar dos tempos de colégio, quando éramos mais inocentes e mais felizes. Agora, por favor, queiram tomar seus lugares, o desfile vai começar.

Lucca e Ardriel foram para os lugares reservados para eles pela produção do evento, de fato lugares bem bons, junto da passarela. E foi com orgulho que viram a filha do meio brilhar nesta e ser aplaudida por todos apesar de ser uma modelo estreante.

Depois do desfile foram até os bastidores buscar a filha e cumprimentar Paulus quando uma nuvem negra envolveu eles dois, sua filha, o estilista e também Rai.

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