Avô e Neta

Num pátio de treinamentos em Erdan, uma neta e seu avô descansam após um intenso treinamento de esgrima.

Ela uma jovem alta, dezessete anos, de pele clara e orelhas compridas, que facilmente passaria por uma elfa se não fosse o seu longo e brilhante cabelo azul, que naquele momento se encontrava preso numa trança, que entregava que ela era uma ninfa.

Ele um meio elfo alto, forte, sessenta e dois anos, com cabelos castanhos cortado curtos e alguns fios grisalhos nas têmporas.

– Hoje você pegou pesado vô… – comentou a jovem enquanto se alongava.

– Ué, não foi você mesma que pediu, dizendo que como o tempo de treino tá reduzido por causa do vestibular, você queria compensar?

– É verdade.

A jovem acabou de se alongar, foi num balde com gelo de onde retirou uma garrafa de água e sentou-se num banco que havia no pátio bebendo a água para se refrescar.

Seu avô seguiu o exemplo da jovem e sentou-se ao lado dela.

– E aí? Tudo bem entre você e o Frank? Sua mãe disse que vocês andaram se estranhando.

– Ta tudo bem sim, vô. Realmente a gente discutiu outro dia, mas tá tudo bem. Afinal qual casal nunca discutiu?

– Eu e a sua avó, depois que viramos realmente um casal.

– Vocês não contam. O problema é que o Frank, às vezes, é meio turrão.

– O Frank é turrão? Como diriam lá em casa, é o roto falando do esfarrapado.

– Hahahaha. Eu mereci ouvir essa. E não me entenda mal, vô, não quero que o Frank mude, sei bem que amar é aceitar a pessoa do jeito que ela é.

– Nunca achei que você quisesse que ele mudasse, mas tem certas coisas que a gente pode sim desejar que a pessoa mude mesmo amando ela do jeito que ela é.

– Por falar em amar, em mudar…

– Sim?

– Vô, você acha que os meus pais de sangue gostariam de mim? Da pessoa que eu sou hoje?

– Você também vai me fazer essa pergunta? – riu Lucca

– Também?

– Sua tia Galawel fez a mesma pergunta, quando adolescente, para mim e para a sua avó. E a resposta que eu vou te dar é a mesma que dei para ela: sim, tenho certeza de que eles gostariam de você. E digo isso com mais convicção do que disse para a sua tia pois eu conheci muito melhor os seus pais do que a mãe dela.

– Eu às vezes me esqueço que você, vovô, foi amigo deles. Aliás, tem como o senhor falar um pouco mais deles?

– Falar o que deles?

– Tudo, ué….

– Agora você falou igual à tua mãe Rebeca.

– Culpa dos anos de convivência. E não enrola, vô.

– Você continua a falar como ela – sorriu o meio elfo. – Tudo é meio complicado, afinal eu convivi bastante tanto com a Niran quanto com o Andrew…

– Andrew Cook. Um nome meio britânico para um elfo, não?

Lucca cuspiu a água que estava bebendo e começou a rir.

– O que foi, vô?

– Essa foi exatamente a primeira coisa que eu falei para o seu pai quando o conheci. Na época eu não conhecia a história da Planície Oriental e de toda a influência britânica que existe por lá.

– Tá aí. Você pode começar por quando você conheceu ele.

– Eu conheci o seu pai Andrew quando eu disputei o meu primeiro torneio de cavalaria aqui. Ele já era um aventureiro relativamente conhecido na região oriental do continente e também no Reino de Arlon, mas como favor ao meu irmão Sieg, que o criara deste a adolescência, ele topou o ajudar nos preparativos da minha estreia no torneio e até serviu como meu escudeiro. Aliás, ele foi um dos cupidos que ajudou a juntar eu com a sua avó.

– Sério?!

– Sim, imagino que você tá ciente que em torneios maiores é normal um cavaleiro presentear uma dama com a sua bandeirola, assumindo ela como a “sua dama” e jurando defender a honra desta, certo?

– Sim, sim, tô ciente.

– Pois bem, o Andrew, por ideia dele e com a aprovação do teu tio avô Sieg, entregou a minha bandeirola para a sua avó.

– Que legal. Mas já existia um clima entre vocês?

– Nada! Ele fez isso de “zoeira” pois o Sieg já havia contado que eu e a sua avó estávamos, naquele momento, implicando direto um com o outro e também porque o Sieg havia comentado que queria dar um jeito de chamar a atenção para mim.

– E que melhor jeito do que chamar a atenção do que escolher a princesa herdeira como sua dama, não é mesmo?

– Perfeito, minha neta. Essa foi a intenção deles e deu certo. Eu virei o alvo das atenções, ganhei o torneio e, na festa após este, sua avó, como minha dama, foi obrigada a dançar comigo. Foi a nossa primeira dança e foi quando a gente começou a realmente se aproximar. Depois disso a gente virou amigo e da amizade para o amor foi um pulo. Mas garanto que você já está careca de ouvir essa história, né?

– Tô, mas nunca me canso de ouvir, porém, hoje, vô, o foco é outro.

– Hahahah, tá bem, tá bem. Mas tudo é muita coisa, afinal Andrew foi um dos meus melhores amigos neste mundo.

– Melhores amigos… Bom, já tenho um ponto por onde o senhor pode começar…

– Qual?

– Se ele era um dos seus melhores amigos, por que ele não participou do resgate da vovó?

– Bom, ele se tornou um dos meus melhores amigos após o meu “retorno” para cá. E o mesmo serve para a sua mãe, ela e a sua avó já se conheciam, mas só se tornaram amigas depois do meu retorno para cá. E quando eu retornei e fui em busca da sua avó, seus pais estavam enrolados com seus próprios problemas na região oriental do continente, o que impediria eles de ajudarem mesmo se quisessem. E, ainda assim, ele veio pedir desculpas, dizendo que um escudeiro tinha que estar sempre disponível para ajudar seu cavaleiro.

– E o senhor o respondeu o mandando à m, certo?

– Perfeitamente!

– Já que o senhor citou, que problemas eles estavam resolvendo na região oriental? E, aliás, outra curiosidade que eu sempre tive: como ele e aquele traste que afirma ser meu tio foram parar na casa do meu tio avô Sieg?

– Bem, acredite, sem querer você fez duas perguntas que estão entrelaçadas. Você sabe que até a chegada do Frank, primeiro o seu pai e, depois você, eram os herdeiros presumíveis da Regência de Vitória, certo?

– Sim, mas o que isso tem à ver?

– Ô impaciência, você não seria tão parecida com a Rebeca se fosse filha de sangue dela. Vamos lá, apesar de, naquela época, o Regente de Vitória ser um regente sem trono, ele ainda possuía alguma importância e relevância e sua influência era temida por alguns. O seu “avô de sangue”, o pai do Andrew, acreditava que nobres de Costa do Sol poderiam estar tramando para matá-los por temerem que os Cooks reivindicassem o governo de Costa uma vez que esta, no passado, pertencera à Vitória. Temendo pela continuidade de sua família, ele, que conhecia o seu tio Sieg graças ao passado deste como aventureiro, pediu para que, caso ocorresse algo com ele e com a esposa dele, que o Sieg levasse os filhos dele para Arlon e os criasse por lá. E foi o que o meu irmão fez. Ele acolheu o Andrew, na época com 15 anos e o Rags, na época com 13, na casa dele e os treinou da melhor maneira possível. Andrew mostrou talento para aventura e para o uso de espadas e Rags demonstrou ser bom com matemática e com o comércio e seu tio avô deixou eles seguirem o rumo de seus talentos. E eles cresceram seguros lá em Swordia pois, mesmo que se tivessem pessoas interessadas na morte deles, estas não teriam coragem de se meter com o sobrinho do Rei de Arlon.

– Eu diria que quem conhece o tio Sieg e a tia Liliana tem medo deles não por eles serem parentes do rei, mas por eles serem eles mesmos…

– É um ponto de vista, minha neta. O fato é que os irmãos Cook cresceram em segurança em Swordia. Andrew, à despeito dos protestos do Sieg, saiu de casa aos 21 para ser um aventureiro e Rags foi trabalhar numa companhia de comércio de um amigo do seu tio Sieg.

– Foi graças a ele virar aventureiro que ele conheceu a minha mãe, certo?

– Perfeitamente. Ela nessa época também agia como aventureira, usando um nome falso e se apaixonaram logo embora tenham demorado para se casar e ainda mais para ter você. E demoraram, em parte, por causa dos “cargos” deles. Sua mãe era a rainha das ninfas, alguém importante e influente não só na porção oriental do continente, mas em todo o continente e o seu pai, por mais que fosse um “regente sem trono” ainda assim era o líder da Casa Cook e alguém respeitado na região. E as eles acabavam adiando a ideia de montar uma família por causa das atribuições dos seus cargos, sempre enrolados ajudando os necessitados da região, como na época do meu “retorno”. Até que amigos próximos, entre eles eu e a sua avó, começaram a pressioná-los e assim você nasceu. 

– Ainda bem né? Porque se tivessem me tido cedo eu, no máximo, teria sido sua filha e não sua neta e eu adoro ser sua neta.

– Obrigado pela parte que me toca, mas você quase foi minha filha, sabia?

– Opa, como assim?

– Bom, quando a sua mãe engravidou, ela e o seu pai optaram por irem morar na vila dos centauros pois eles desconfiavam que corriam perigo, apesar do casamento do Rags com a herdeira da Costa do Sol ter, em tese, neutralizado a suposta ameaça que vinha de lá. Embora nunca tenham me dito a origem dessa desconfiança ainda assim eu acreditei neles, confiava neles e cheguei a convidá-los a ir morar em Arlon. Sieg até falou para eles morarem em Swordia, mas eles insistiram que a Planície Oriental era a terra deles e que eles estariam seguros entre os centauros. Ainda assim eu e o seu tio avô os visitávamos com frequência e estávamos sempre checando os arredores da vila. De fato, a sua gestação correu sem percalços e você nasceu linda e forte. Eu não pude estar presente no seu nascimento, mas sua avó Ardriel e sua tia avó Liliana estavam lá.

– Tá, mas o que isso tem a ver com eu ter quase sido sua filha?

– Calma, tô chegando lá. Sua mãe evitou sair da vila nos primeiros meses depois do seu parto, mas, lentamente, ela foi retomando a vida dela normal. Até que veio o fatídico dia da morte dos seus pais. Quando a notícia chegou por aqui, nós fomos correndo para a vila dos centauros. Eu e o Sieg reviramos a região em busca de pistas e nada achamos. Sua avó Ardriel queria levá-la conosco para que fosse criada por nós, mas eu a convenci a respeitar o testamento deixado por seus pais para que você fosse criada pelos centauros. Seu tio Rags também tentou levá-la, mas eu o “convenci” a deixá-la em paz. Talvez seja por isso que ele não goste de mim até hoje.

– Agora entendi. E, de novo, teria sido incrível ser filha de vocês, mas eu acho que prefiro ser neta mesmo. Netas são mais mimadas do que filhas.

Lucca começou a gargalhar alto diante do comentário da neta.

– Aliás, já que você tocou no nome do traste, antes da gente retornar o treino, se a minha “tia” Margareth era essa pessoa tão incrível, como é que ela se casou com o traste do meu tio? E o que isso tem a ver com “neutralizar a ameaça da Costa” como o senhor disse antes?

– Vamos lá, eu concordo com o fato do seu tio ser um verdadeiro p& no sa#% mas ele também tem suas qualidades. É um bom comerciante, é bom de matemática e, aparentemente, sempre amou a Margareth de verdade. O sogro dele, diferente de alguns nobres da Costa do Sol, não via os Cooks como uma ameaça ao seu governo, pelo contrário, tinha interesse em se aproximar deles. Ele promoveu um baile para apresentar a sua filha e única herdeira ao seu pai e ao seu tio. O “alvo” dele original era o seu pai, mas ele já estava namorando a sua mãe. E mesmo que não tivesse, Margareth se apaixonou pelo seu tio à primeira vista. E o pai dela não se importou, uma vez que, para fins políticos, não fazia diferença com qual dos Cooks ela se casasse. Talvez fizesse se o seu pai não fosse um regente sem trono, mas como ele o era, não fazia diferença. Quanto à parte de neutralizar…

– Deixa ver se eu adivinho: o medo dos nobres era que os Cooks tentassem tomar o trono da Costa na marra, mas com a princesa herdeira casando-se com um Cook, na prática a família Cook já herdaria o trono e não teria mais risco de um golpe, certo?

– Exato. Agora vamos voltar ao treino antes que fique muito tarde. Outro dia eu te conto mais histórias se você quiser.

– Sim senhor – retrucou jovem enquanto batia continência com a língua de fora.

O meio elfo não falou nada, só passou a mão na cabeça da neta, bagunçando os cabelos dela e se levantou, indo para o local de treino, sendo seguido por ela.

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