O Arquiduque e a Dinastia

Parte 01

Num salão do palácio de Erdan, Lucca conversava com sua filha mais velha, então com vinte anos.

– Fico feliz, pai, que tenhas aceitado o pedido do vovô.

– De ser o novo Arquiduque do Delta? Bem, digamos que seu avô não me deixou muita opção.

– Mas ele tá certo, pai. O Arquiduque é o sucessor do trono de Erdan caso o rei não tenha herdeiros. É o típico título que não pode ser entregue à qualquer um e uma vez que o velho Arquiduque morreu sem nenhum herdeiro, ele tinha que indicar alguém.

– Tá certo, filhota, mas não ache que você vai escapar disso incólume.

– Como assim?

– Bem, amanhã, na mesma cerimônia em que eu vou ser sagrado Arquiduque, você será sagrada Condessa de Entrerrios.

– Perai, pai. O título do condado de Entrerrios não é reservado ao herdeiro do Arquiduque?

– Exato e, como minha filha mais velha, é justo que ele seja seu. Seu irmão Miguel é o herdeiro da sua mãe, nada mais justo que você seja a minha. E, assim como o seu avô não me deu escolhas, eu tão pouco estou lhe dando, filha. Como você mesmo disse, não é um título que possa ser entregue a qualquer um.

Galawel suspirou fundo, resignada, e depois perguntou:

– Quando você me chamou, disse que queria me mostrar algo, pai. O que é?

– Na verdade são duas coisas, mas, para mostrar a primeira, temos que antes fazer uma breve viagem.

– Viagem?

Com um gesto, Lucca teleportou ele e a filha até uma torre de pedra.

– Antes que perguntes, filha, estamos na torre mais alta do castelo que serve de sede para o Arquiducado. E o que eu quero que você veja está ali, naquela janela.

A elfa foi até onde o pai indicou e viu uma velha fortaleza circular em ruínas no topo de uma colina.

– Que prédio é aquele, pai?

– Aquela, filhota, é a velha Fortaleza da Rosa, também conhecida como Castelo do Espinho. Foi construída no local onde ficava a casa onde os Cavaleiros da Rosa originais foram fundados e era lá onde eles costumavam se reunir. E agora ela é minha, seu avô me deu ela. E para botar em pratica o plano que tenho em mente para ela, vou precisar da sua ajuda, não agora, mas vou precisar.

– Fale, pai, se eu puder ajudar, ajudarei com prazer.

– Sei que você já me ouviu resmungar “n” vezes dizendo que nunca treinaria mais ninguém, que fui um fracasso como treinador no passado e etc.

– O que é uma grande bobagem, a meu ver.

– Exatamente. E chegamos aonde eu queria chegar. Eu estava pensando em, sei lá, reformar a Fortaleza e montar um centro de treinamento lá, que tal? Não agora, não tão cedo, quero primeiro treinar seus irmãos, mas, depois que eles chegarem à idade adulta e eu não tiver que treiná-los mais, quem sabe, pode ser uma boa ideia, não?

– Eu acho excelente, pai! E como queres que eu te ajude? Ajudando a treinar os alunos?

– Exato!

– Topo. Hoje eu não poderia ajudar devido ao meu cargo em Arlon, mas, daqui a alguns anos, por que não?

– Sabia que podia contar contigo!

– E a outra coisa que querias me mostrar?

Lucca tirou um pergaminho velho do bolso e entregou à filha.

– Leia. Eu achei isso no meio da papelada do velho Arquiduque.

Galawel leu o pergaminho e as palavras contidas neste a deixaram muda.

– Chocante, não?

– Chocante é pouco! Isso muda muita coisa! O que o senhor pretende fazer com essa informação?

– Divulga-la amanhã, após a cerimônia.

– Mamãe e vovô estão cientes disso? E o que acham?

– Sim, estão. Teu avô disse que, como novo Arquiduque e como líder da Casa Bianchi, a decisão é minha. Tua mãe adorou a novidade. Aliás, eu e ela estamos apostando para ver a reação dos nobres amanhã presentes.

– Olha que eu não duvido que tenha muita reclamação e muita cara feia, mas, se eu te conheço bem, pai, e eu conheço, você vai até gostar disso.

O meio elfo começou a rir do comentário da filha e, após parar de rir, os teleportou de volta ao castelo de Erdan.

Parte 2

No dia seguinte, um grande número de nobres se encontrava reunidos num dos salões principais do Castelo de Erdan para ouvir o pronunciamento real. Haviam sido colocadas várias cadeiras em fileiras diante de um pequeno palco.

Sentados na última fileira se encontravam conversando um meio elfo idoso, calvo, Lord Harduin Ralit, visconde de Thundering e uma jovem elfa de cabelos castanhos e uma grande barriga que demonstrava que ela estava gravida de oito meses, Lady Vynan Arivald, condessa de Kretiburg.

– E para quando é o bebê? – perguntou ele.

– Para daqui a um mês.

– Afinal, minha querida condessa, quem é o pai? Afinal o bom conde já faleceu a mais de dois anos…

– Digamos, Harduin, que é um segredo tão bem guardado quanto o segredo de sua vitalidade, pois, afinal, quantos anos o senhor tem, meu amigo? Duzentos?

– Isso, cara condessa, eu não revelo nem sobre tortura. Agora sugiro que prestemos atenção ao palco pois o rei já chegou e acompanhado de uma pequena comitiva…

De fato, o rei entrara por uma porta lateral acompanhado de Ardriel, Rubi, Lucca, Galawel e da condessa de Aquamarine, Ariel, uma bela elfa de cabelos negros, sardas no rosto e olhos verdes, e se sentara no trono que havia sido colocado no palco, com os outros se sentando em algumas cadeiras que se encontravam à esquerda e à direita do trono.

– Meu caros nobres, agradeço a vossa presença nesta tarde – disse o rei. – Convoquei essa cerimonia para finalmente atender um apelo feito por vocês. Já faz seis meses que vens me solicitando um substituto para o falecido Arquiduque do Delta. Pois bem, hoje lhes dou uma resposta. Decidi que meu genro, Lukhz Bianchi, príncipe consorte do reino, será o novo Arquiduque do Delta, com todos os direitos, deveres e prerrogativas do cargo.  Além disso, nomeio minha neta adotiva, Galawel Fornorimar Bianchi, Condessa de Entrerrios e, assim, herdeira do seu pai, Lukhz, no que diz respeito ao cargo de Arquiduque.

Lady Vynan virou-se com um sorriso provocador para Lord Harduin:

– O que achastes, meu caro? Afinal suas principais terras estão dentro da área do Arquiducado do Grande Delta, não?

– Sim, de fato estão, mas isso pouco me afeta, afinal o título de Visconde de Thundering é uma prelasia real, o meu senhor feudal é o rei, logo a nomeação dele para o cargo em nada me atinge, diferente do Condado de Kreitburg, que é diretamente subordinado ao Arquiducado…

– Começo a achar que o fato dele ter salvado a vida do seu bisneto começa a lhe afetar a visão à cerca dele, meu caro amigo…

– Bobagem. É obvio que sou grato, mas, ao mesmo tempo, nós os Ralit sempre fomos justos. E devo reconhecer que Lord Lukhz sempre deixou claro que nada queria ter com a política do reino, por se considerar um estrangeiro, o que de fato o é, pois até hoje nunca nos foi revelado onde afinal ele nasceu, e por considerar que não é prerrogativa dele, como Principe Consorte, se meter nos meandros do poder.

– Mas agora ele vai poder usufruir de tal prerrogativa.

– Duvido, o cargo de Arquiduque sempre foi mais honorifico do que qualquer coisa. Claro que na ausência de sucessão do rei, ele ganha importância, mas, na prática, Lord Lukhz por ser marido da princesa herdeira e pai do herdeiro dela já havia adquirido tal importância. Agora vamos nos calar, parece que ele tem algo a dizer.

De fato, Lukhz havia se levantado e aguardava o fim do burburinho para poder se pronunciar. Quando o salão finalmente se silenciou, ele se dirigiu a todos.

– Meus caros nobres aqui presentes, eu gostaria de tranquilizá-los. Até hoje evitei me meter nos negócios do estado e na maneira como o meu sogro e a minha esposa gerenciam este e afirmo-lhes que tal posicionamento não mudará. Obviamente assumirei responsabilidades inerentes ao cargo que me foi concedido no que tange a região do Grande Delta, porém, com relação ao reino de Erdan, minha postura nada mudará. Agora, gostaria de anunciar algo muito mais pessoal, mas que, creio eu, será do interesse de todos – Lucca fez uma breve pausa enquanto tirava de um bolso da calça o mesmo pergaminho que mostrara à sua filha. – Este pergaminho, senhores, foi escrito por Edaim, o segundo rei de Sudher, meu tio bisavô e confiado ao Arquiduque do Grande Delta da época e vem sendo passado de Arquiduque para Arquiduque durante todos esses anos e, no texto, Edaim incube o Arquiduque do direito de revelar ou não o seu conteúdo e eu, como novo Arquiduque, resolvi revela-lo.

O meio elfo respirou fundo, abriu o pergaminho e começou a lê-lo:

“Seja vós quem fores, se estas lendo este pergaminho, espero que seja após a minha morte, como solicitei ao meu bom amigo, o Arquiduque, que o revelasse somente após o fim de minha vida. Esta é a minha última vontade e meu testamento final.

Eu, Edaim, em vida, fui conhecido como um símbolo de virtude e de caráter, porém, na verdade, isso apenas foi um mito. Sou um humano, e, como meus pais me ensinaram, sou imperfeito, como todos os humanos. Eu desejei uma mulher casada, pior, a mulher de um amigo e a conquistei. Levei a bela Leona, esposa de meu bom amigo Filer, para o meu leito e fiz dela minha.

Quis o destino que esta minha única noite de pecado rendesse um fruto que o bom Filer assumiu como seu, por amor à sua esposa, que nunca revelou ao marido o verdadeiro pai da criança. Não podendo dar ao meu filho o título e o tratamento que ele merecia por ser filho do rei, concedi a ele o título de Conde de Aquamarine e terras e posses para nunca falte a ele e à sua família nada.

O meu trono, ao morrer, deixarei ao meu bom irmão Genarion, pois, mesmo que eu pudesse reconhecer como meu o filho que concebi sem jogar o nome do bom Filer na lama, ainda assim não poderia deixar o meu reino para ele por se tratar de um filho ilegítimo.

Porém existe algo que posso relegar: a minha história e a minha família. Como líder da Casa de Bianchi e tendo o Arquiduque e vós, caro leitor, como testemunhas, decreto que, caso, porventura, a casa de Bianchi venha a se extinguir nesse grande mundo que chamamos de Noritvy, caberá à recém-criada casa de Aquamarine herdar todos os títulos e propriedades inerentes à casa de Bianchi, à exceção da coroa de Sudher que passara ao nobre que estiver ocupando o cargo de Arquiduque do Grande Delta.

Edaim Bianchi,

Rei de Sudher, Senhor do Grande Delta,

29 de Cingo de 4495″

– Como podem ver, essa carta foi escrita apenas cinco dias antes dele falecer, em 3 de Shikou de 4495 – falou Lucca, ao fim da leitura do pergaminho. – Não tenho por que duvidar da validade desse documento e, assim sendo, como atual líder da casa de Bianchi, embora não seja o mais velho membro vivo dela, e como atual Arquiduque, anúncio que farei valer a vontade de Edaim e, assim, doravante, reconheço a Casa de Aquamarine como um ramo da Casa de Bianchi e sucessora nesta em todos os direitos e obrigações daqui em diante. Isto é, se a atual líder da Casa de Aquamarine não se opuser.

Todos os olhares naquele momento se voltaram para Ariel. Esta, um tanto sem graça, se levantou e disse:

– Como eu poderia recusar tal honraria? Como eu poderia abrir mão de assumir ao mundo que o sangue daquele que é visto por muitos como o maior monarca que já passou por estas terras corre na minha veia? É com muita honra que aceito o que a mim foi confiado e, desde já, faço juras de fidelidade à Casa de Bianchi e a seu líder.

– Bem, meus nobres, creio que, por hoje, estão dispensados – sorriu o rei.

Enquanto os nobres se retiravam Lucca e Ardriel foram até Ariel e a abraçaram, ao mesmo tempo.

– Bem-vinda à família, “prima” – falou com um sorriso, Lucca.

– Eu sempre te considerei parte da minha família e agora tu realmente és – disse Ardriel.

– Estou sem palavras…. – comentou Ariel, envergonhada. – Eu adorei, eu realmente adorei, Lukhz, a surpresa, a Ardriel antes de uma amiga é uma segunda mãe e agora, bem, saber que sou prima de vós, num grau distante, mas prima, bem, é ótimo. Mas bem que poderias ter me avisado antes…

– Ele não queria contar nem para mim, Ariel…

– E estragar a surpresa? – provocou Lucca. – Eu não queria perder por nada nesse mundo isso que estou vendo agora…

– O que você está vendo agora, amor?

– A felicidade em seus rostos.

– Bobo… – riu a princesa, antes de beijar o marido.

– Alias, Lukhz, quer dizer, primo, nem sei mais como te chamar agora, devo incorporar uma rosa no brasão da minha casa?

– E estragar aquele que, para mim, é o mais belo brasão do continente? Nem pensar. E pode me chamar como quiser, de Lukhz, primo, Lu, como preferir.

– Acho que vou continuar te chamando de Lukhz mesmo… São vinte anos de costume…

Ao mesmo tempo, no fundo do salão, Lord Harduin e Lady Vynan conversavam, já em tom de despedida.

– Minha vez de perguntar: o que achastes de ver a sua velha adversaria, a Condessa Ariel ganhar poder e influência, hein minha cara Lady?

– Ariel só ganhara tal poder se a família Bianchi se extinguir, mas, do jeito que eles estão se reproduzindo como coelhos, acho isso improvável.

– Mas não incomoda nem um pouco?

– Não, não se preocupe meu amigo, meu futuro já está garantido – retrucou a condessa fazendo um cafuné na própria barriga.  – Agora, se me das licença, preciso repousar.

Vynan se retirou do salão deixando um intrigado Harduin para trás.

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